A Piazza della Signoria de Florença

“Uma volta pela Piazza della Signoria em uma manhã quente de primavera fará você se sentir em uma Disneylândia histórico-artística, com filas serpentinas na Uffizi e o Davi de Michelangelo (o falso) no papel de Mickey Mouse. Saia do roteiro tradicional, no entanto, (...) e o mais provável é que você se veja contemplando pouco mais que fachadas de pedra. Muitas das ruas são tão estreitas que, quando passar um carro, você terá que se encostar na parede, feito gato assustado. Por onde quer que você vá há portas tão imensas que foi preciso entalhar dentro delas outras portas, menores, de tamanho humano; há até mesmo portas de madeira que foram esculpidas para parecer de pedra. Todas estão fechadas – ainda assim, quando se abre uma delas e surge um velho cachorro schnauzer, puxando a guia segura por sua condessa, durante o milésimo de segundo em que ela mexe com as chaves você vislumbrará o pátio com uma fonte (...). Aí a porta se fecha rangendo e você fica outra vez sozinho com o que McCarthy chamou de ‘autoritárias superfícies’ das fachadas. (p. 16-7)
(...) Se a melhor hora para olhar a praça é cedinho, logo depois do amanhecer, a melhor maneira de chegar até lá é partindo do rio: sobe-se a Lungarno Archibusieri, dobra-se à direita e, de repente, no fim do longo corredor Uffizi, abrindo-se como um fórceps, lá está ela – lá está você. Você fica parado, no centro do mundo. A piazza paira sobre você. (...) Perto do Palazzo Vecchio, Netuno se banha em uma fonte que em geral está desligada. O falso Davi medita, eros escorrendo de seus longos dedos. Hércules castiga o vencido Caco. Poucos lugares no mundo são tão ricos em acontecimentos históricos. Afinal de contas, nesta piazza, Savonarola queimou as vaidades e foi, ele próprio, queimado. (...) Cellini inaugurou seu Perseu de bronze. O Davi de Michelangelo foi erguido e, então, alguns séculos mais tarde, levado para a Accademia, em trilhos especialmente adaptados. A rainha Vitória atravessou esta piazza de carruagem. Distúrbios ocorreram aqui, sangue foi derramado em grande quantidade e da sacada do Palazzo Vecchio, em 1938, Hitler apertou a mão de Mussolini enquanto os fascistas cantavam.
Hoje algas verdes cobrem as panturrilhas de Netuno. As algas são os pés-de-atleta da história. A piazza é o banheiro dos séculos, onde deuses e heróis desfilam nus, mostram genitais enormes, gabam-se de conquistas, exibem troféus. (...)






À noite, a impressão é ainda mais forte. Tochas ao longo das bordas do Palazzo Vecchio emprestam um vivo esplendor às pedras, como se a luz as fizesse derreter. Nessa hora, a vista de Netuno, com sua escorregadia umidade branca, basta dar água na boca. Olhando-o, você finalmente entende por que os escultores brigavam pelos blocos de mármore branco de Carrara. (p. 34-5)
(...) Todo verbo ligado a vistas florentinas implica colapso, submissão. Há momentos, especialmente à noite, em que uma caminhada pela Piazza della Signoria me deixa estupefato (...).” (p. 33)





* Texto extraído do livro “Florença, um caso delicado”, de David Leavitt (Companhia das Letras).

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