No topo do mundo

Uma cadeia de montanhas que atravessa a América do Sul em quase oito mil quilômetros de extensão, da Venezuela à Patagônia. Esta é a Cordilheira dos Andes, que tem no monte Aconcágua – com seus 6.962 metros – sua maior altitude. É o ponto mais alto do planeta fora da Ásia. Com atributos assim, os Andes merecem atenção – se bem que é impossível não reparar neles de modo que prestar atenção é quase uma necessidade automática.
Do alto, no avião, os Andes surgem como um obstáculo a ser superado. Até parece, em dado momento, que não será possível superá-lo tamanha a proximidade das montanhas. A sensação é que se pode tocá-las. Olhando do lado, vê-se um e outro pico cujas altitudes chegam a superar a do avião. É uma visão incrível! Na primavera, o pouco da neve que restou acrescenta um branco ofuscante ao tom marrom das montanhas. Um grande bolo de chocolate com cobertura, isto é o que são os Andes.
Conforme se avança sobre as montanhas, pequenos lagos vão surgindo, frutos do degelo pós-inverno. Eles dão cores diferenciadas – e incrivelmente belas - àquela imensidão marrom. Pequenos núcleos habitacionais também aparecem aqui e acolá, o que leva inevitavelmente a uma pergunta: como pode alguém viver ali, quase no topo do mundo?







Encontrar esta resposta exige se aproximar das montanhas. E lá fui eu a três mil metros de altitude até Valle Nevado, famosa estância de inverno chilena que atrai cerca de 20 mil pessoas por dia durante o período da neve, entre o final de julho e o final de setembro (ou começo de outubro quando a temporada de gelo se estende). Chegar até lá exige sacrifício... dos motoristas. São 61 curvas - e só vale contar as que são em 180 graus e em aclive; curvas menos acentuadas não são consideradas. Desnecessário dizer que não se dispõe de nenhum primor de estrada no trajeto (e a preferência é de quem está subindo, sempre).
Desde o início, é perceptível o poder da montanha. Ela domina durante todo o tempo. Seja de baixo, vendo seu topo coberto de branco, seja quando se começa a subir e aparecem os primeiros precipícios. Rapidamente se descobre que é preciso respeitá-la, respeitar seus limites, nossos limites. Quando você se aproxima de ser um andinista (alpinista é quem escala os Alpes), ainda que dentro de um micro-ônibus, tem a noção exata da força da natureza.
Os Andes são uma formação rochosa nova, quase um recém-nascido em termos geológicos. Daí sua altura (os picos maiores são mais novos; os menores, mais antigos). As montanhas surgiram há cerca de 65 milhões de anos como resultado do movimento e do choque de placas tectônicas existentes na região (foi quando a placa oceânica Pacífica “trombou” com a placa continental Sul-Americana). Um belo presente do planeta Terra a nós, humanos.
Conhecer a montanha exige reparar em cada detalhe. A vegetação, por exemplo. Ela é tão variada quanto fantástica e reveladora. Embaixo, vê-se o verde que tenta ser uma floresta. Conforme a altitude aumenta, surgem espaços que parecem pradarias. Pequenas flores amarelas mancham o chão e dão um tom todo especial ao lugar. Também surgem cactos – isto mesmo, uma espécie de cacto diferente, que suporta a neve. Aos poucos, o verde e as árvores vão se tornando mais raros, até desaparecerem por completo. A três mil metros, praticamente nada resiste.
Os animais também são raros, embora se saiba que eles estão por ali. Diz o guia que é possível encontrar nos Andes o puma e o condor, a ave-símbolo do Chile. De cor negra, o condor vive no alto da montanha e tem como característica sua fidelidade. Com suas penas completamente negras e sua grande envergadura de asa (chega a três metros), macho e fêmea vivem como marido e mulher até que a morte os separa. Durante minha subida, um condor deu o ar de sua graça, muitos metros acima dos três mil onde estávamos. Voava caprichosamente, desfilando majestoso sua beleza e sua solidão. Fora isso, o que se vê são cavalos. Em Valle Nevado, um cão solitário dormia tranquilo na beira do nada.
Se olhar os Andes da janela do avião chega a ser mais fantástico do que tocá-lo, há uma experiência que se compara à visão aérea. Experimente ficar em silêncio por alguns instantes. Em completo silêncio (de preferência sozinho e à beira de algum dos abismos que se apresentam ao seu redor). Respire fundo. Sinta o vento bater em seu rosto. Em seguida, feche os olhos e aguce os ouvidos. Então, ouça a montanha.
Você descobrirá que, apesar do mais absoluto silêncio, a montanha fala. E ela ensina lições que você carregará para sempre, lições que o tocarão no fundo da alma. Ali, naquele aparente fim de mundo (ou seria o começo dele?), você se sentirá o mais importante dos homens. Até abrir o olho novamente e perceber que, naquele infinito, você não é ninguém. “Veja como você é pequeno em comparação com as montanhas. Aceite o que é maior, e que você não compreende. (...) Nossas vidas não são a medida de todas as coisas: contemple lugares sublimes como um lembrete da fragilidade e insignificância do ser humano”, já ensinou Alain de Botton em seu “A arte de viajar” (p. 190).
Mas não, não desanime... Você, eu, todos nós somos pequenos quando estamos nos Andes. Nesta hora, lembre-se que você chegou lá! Naquele belo bolo de chocolate com cobertura que você tinha visto lá de cima, da pequena janela do avião.








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