Uma joia cravejada no coração de Paris

Um dos principais pecados de um turista é desconhecer o seu destino. Não falo sobre saber para onde ir, mas sobre ter informações prévias do lugar para onde se vai. Pode parecer pouco, mas faz muita diferença. Se na vida a pessoa só se sente íntima daquilo que conhece, numa viagem vale a mesma regra. Acredite: é mais fácil se entusiasmar se conhecemos a história de um lugar.
Em 2008, por exemplo, cometi esse desatino turístico. Estive em Sainte-Chapelle, uma pequena capela próxima da gigantesca Catedral de Notre-Dame, na Île-de-la-Cité, em Paris. O acesso ao lugar apresentava uma longa fila - provocada pelo controle policial e o sistema de raios-x. Na ocasião, não entendi bem a razão de tanto rigor para um lugar aparentemente sem nada de especial.
Sainte-Chapelle é bonita, marcadamente pelos seus coloridos vitrais, mas para quem acabara de sair de Notre-Dame, ela dá a impressão de não ser nada mais do que uma capela, encrustrada no atual Palácio da Justiça. Vê-la de fora exige até um certo malabarismo (seu teto fica quase escondido em meio ao palácio).


No entanto, arrisco-me a dizer que Sainte-Chapelle tem tanta história quanto a colega localizada ali pertinho, a algumas poucas quadras. Basta dizer que é um dos mais antigos templos parisienses (embora sua construção tenha começado depois de Notre-Dame, ela ficou pronta antes, em meados do século 13). Foi projetada por ordem do então rei Luis 9º, depois São Luís. Uma história intimamente ligada à consolidação da monarquia francesa, como conta a escritora Ina Caro em seu livro “Paris sobre trilhos – Viajando de trem pela história da França” (ed. Leya).
“Sentar na porção superior dessa capela gótico-radiante do século XIII, lugar um dia reservado para S. Luís e a família real, é como sentar-se dentro de uma caixa de joias gigante invertida. As paredes parecem feitas inteiramente de vitrais e a pouca pedra que resta é esculpida com tanta delicadeza, em traçados radiantes ou dourados que não parece ser pedra. O teto abobadado é cravejado de estrelas, enquanto que o teto da câmara inferior é coberto de flores-de-lis. (p. 136)
De qualquer modo, você deve visitar Sainte-Chapelle enquanto está em Paris. (...) Uma vez completada, em 1248, intimidava e deliciava a todos que a viam, e aqueles que podiam fazê-la – como Henrique III da Inglaterra que, de acordo com canções populares da época, queria levá-la para casa – a copiavam imediatamente.
(...) Como um relicário criado por um ourives, cada centímetro do interior da Sainte-Chapelle é coberto de decoração elaborada; até mesmo as doze estátuas dos apóstolos, cada uma em uma plataforma entre duas janelas, que são entalhadas para parecerem pilares sustentando a Sainte-Chapelle, são semelhantes às figuras em relevo que decoram os relicários. As estátuas foram concebidas para simbolizarem o fato de que os doze apóstolos são os verdadeiros pilares da igreja.
Sainte-Chapelle foi construída, deliberadamente, como um relicário invertido, porque foi feita para abrigar as mais sagradas de todas as relíquias cristãs: a Coroa de Espinhos e um longo segmento da Verdadeira Cruz. (p. 137)
Ao entrar na nave de Sainte-Chapelle, voltada para abside e para os anjos sobre o altar, olhe para a direita. A última janela à direita é aquela que vim ver. Em sessenta e sete cenas, o vitral conta a lenda das relíquias, desde o tempo em que S. Helena as encontrou, até a época em que S. Luís as trouxe para Paris. (p. 139)
(...) Embora o simbolismo e as relíquias da Paixão tenham desaparecido atualmente, ainda podemos ver que em Sainte-Chapelle, assim como em Saint-Denis, as paredes são cobertas de vitrais para permitir que o sol crie uma ilusão de joias fulgurantes no chão de pedra, e as pedras se transformam em tramas delicadas. Toda vez que visito essa bela capela, sou avassalada por sua beleza etérea e elaborada, criada por paredes luminosas de vitrais nas quais tudo o que é concreto aparentemente desaparece e a mente pode flutuar.” (p. 144)







Nada disso, porém, eu vi em Sainte-Chapelle. Não que tenha ignorado a beleza dos vitrais – até porque é impossível passar incólume pela luz emanada por aquelas “joias”, nas palavras de Ina Caro. Contudo, desconhecia a importância daquela pequena capela para a história da nação. Tampouco sabia que o lugar abrigara as mais importantes relíquias da história da humanidade (embora, particularmente, não creia na autenticidade delas).
Não pude reconhecer o valor histórico de Sainte-Chapelle simplesmente porque desconhecia sua história. Não senti as vibrações emanadas pelo lugar em razão de ignorar seu poder. Não entendi tamanha atração popular por uma, até então, simples – embora bela – capela. Faltou intimidade – e isto só se obtém com aquilo que a gente conhece. Na próxima vez que for a Paris, portanto, entrarei na fila para ver a capela novamente. Ou pela primeira vez.

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