Durante o trajeto até as “keys”, como as ilhotas são
chamadas pelos locais, o motorista-guia avisou: não perca tempo com o Mel Fisher Maritime Museum! Num lugar de belezas naturais tão intensas, um mar esverdeado
e claro como poucos, um sol reluzente, céu azul sem nenhuma nuvem, gente bonita
e descolada, atrações diversas em terra, mar e ar, só mesmo alguém deslocado
(não é descolado, é deslocado mesmo) poderia querer ir a um museu. Pois eu fui.
De todas as atrações que o motorista-guia recomendou, priorizei
justamente a que ele criticou. E não me arrependo. Para alguém apaixonado por
história, a visita é um verdadeiro tesouro. Literalmente. O Mel Fisher Museum
guarda – até de forma precária, tanto que foi alvo de ladrões, como registrei no blog “Bate-Bola” – verdadeiros tesouros que ficaram durante séculos repousando
no fundo do mar.
O museu recebeu o nome do seu fundador, famoso caçador de
tesouros dos EUA. Um verdadeiro “Indiana Jones” dos mares, já que a
especialidade dele era a busca de galeões espanhóis afundados na costa
caribenha e da Flórida durante os séculos 16, 17 e 18. Como conta a história,
os navios partiam do “Novo Mundo” levando quilos de ouro, prata e outros
materiais de grande valor na Europa – e quase nenhum na recém-descoberta e
ainda “selvagem” América.
Era a época das grandes navegações, em que Portugal e
Espanha principalmente, mas também Holanda, França e Inglaterra saquearam –
esta é a palavra mais adequada – as colônias americanas de norte a sul. O
intenso tráfego de navios na rota América-Europa fez surgir na região central
do Atlântico uma figura que se tornou folclórica: o pirata.
Uns saqueavam cá, outros roubavam lá – e o destino de
toneladas de ouro, prata e bronze era sempre incerto. Tão incerto que muitos
desses minérios foram parar no fundo do mar. Naturalmente, os galeões e naus de
então não tinham uma estrutura que suportasse certos desafios que o oceano
impõe. Naufrágios eram comuns, principalmente quando alguns elementos surgiam,
como tempestades e piratas. Os navios partiam carregados, o que facilitava o
afundamento.
Durante séculos, histórias de famosos naufrágios ficaram
confinadas aos livros. E às lendas que passaram de geração em geração pela
tradição oral. Até que Mel Fisher decidiu investir na busca desses até então
supostos tesouros. Ele focou o trabalho na história de dois famosos galeões espanhóis
naufragados na costa da Flórida no início do século 17: o “Santa Margarita” e o
“Nuestra Señora de Atocha”.
Ambos afundaram em 1622 em razão de um furacão. “Santa
Margarita” foi encontrado em 1980; “Nuestra Señora de Atocha” em 1985, após
longos 16 anos de busca. O trabalho, esforço e dedicação valeram a pena: Fisher
confirmou o que costumava-se falar a respeito dos dois galeões. Eles estavam
abarrotados de tesouros.
Só para se ter uma ideia do carregamento (e também de quanto
os europeus “roubaram” da América, Brasil incluído), no “Atocha” havia 24
toneladas de prata em 1.038 lingotes, 180 mil pesos em moedas de prata, 582
lingotes de cobre, 125 barras e discos de ouro, 350 cofres de índigo, 525
fardos de tabaco, 20 canhões de bronze e 1,2 mil libras em prataria, fora joias
e outros objetos pessoais de valor. A carga foi estimada em US$ 400 milhões - isto
num único navio! Só a frota da qual o “Atocha” fazia parte tinha 28 embarcações.
No “Santa Margarita”, que compunha a mesma frota, eram 166.574
moedas de prata, 550 lingotes de prata pesando dez mil libras, nove mil onças
de ouro em forma de barras e discos, entre outros tesouros não registrados (os
números citados referem-se à carga oficial; era comum parte do material não ser
contabilizada a fim de evitar o pagamento do imposto real, geralmente 20% de
tudo que era obtido nas colônias. O nome disto é contrabando).
E aí você deve perguntar: quem é o dono de todo este tesouro
quase quatro séculos depois? A Espanha, a quem pertencia o galeão e que seria o
destino do material? Os EUA, onde tudo foi achado (ainda que em território marítimo)?
Os locais de origem da carga – Colômbia, Panamá e Cuba no caso do “Atocha”, mas
também os atuais República Dominicana, Porto Rico, Haiti..., de onde partiam
outros galeões? Ou o próprio Mel Fisher, responsável pela localização dos
navios e a recuperação do tesouro?
Os interessados, claro, reclamaram seu quinhão – ou todo o
quinhão. O caso foi parar nos tribunais. O Estado de Flórida requereu sua parte
e a decisão final, datada de 1 de julho de 1982, coube à Suprema Corte dos EUA.
Fisher levou a melhor e garantiu o direito de ficar com a maior parte da carga
(não me recordo exatamente a divisão).
Hoje, toda esta história pode ser vista no Mel Fisher
Maritime Museum, em Key West. Os tesouros do “Santa Margarita” e “Atocha”
compõem basicamente o acervo do museu. São milhares de peças em ouro e prata,
além de canhões, joias, roupas, objetos de cozinha, documentos, etc. Quando lá
estive, em 2009, antes da visita dos ladrões, era possível até tocar numa das barras de ouro maciço – sem dúvida uma experiência diferente, inusitada e incrível,
comparável ao toque num fragmento de pedra da Lua exposto no National Air &
Space Museum, em Washington D.C.
Portanto, quando passar por Key West, por mais que a
natureza seja farta em exibir ali todos os seus tesouros, saiba que há uma
outra riqueza a ser vista. Uma riqueza que vai além de valores monetários;
envolve uma parte preciosa da aventura humana na Terra. Ah, não se preocupe:
entre tantos descolados que passeiam e se divertem por lá, ninguém irá reparar
em algum deslocado. Descolado, deslocado, o importante é aprender e se
divertir. Minha dica, então, é: passe pelo Mel Fisher Museum. Ainda que você
não goste muito de história, aposto que sairá de lá com a certeza de que nunca
viu tanto outro e prata tão de perto em toda a sua vida.
Em tempo: a tripulação do “Atocha” tinha 265 homens. Apenas cinco
sobreviveram para contar a história, sendo três marinheiros e dois escravos.
PS: a aventura de Fisher em busca do tesouro desse galeão
virou documentário, exibido pelo canal National Geographic.
Nenhum comentário:
Postar um comentário