Uma cidade "fria e cinza"

Uma metrópole vanguardista e ao mesmo tempo monárquica, uma contradição estimulante.
Martha Medeiros, "Um lugar na janela" (p. 17)

- Frederico, como é que é Londres?
- Fria e cinza. E eu me sentia em casa...
Diálogo do seriado “Copa Hotel” (GNT, segunda, 22h30)

Em casa. Eu me sentia em casa, como o personagem interpretado pelo ator Miguel Thiré na série brasileira. Eu, jornalista; ele, fotógrafo. Ambos jovens. Ambos cidadãos do mundo. Ambos declaradamente apaixonados por Londres. Mas a capital inglesa não é “fria e cinza”? Também. E daí? Ele se sentia em casa. Como eu.
Poucas vezes tive a sensação de pertencer a um lugar que eu sequer conhecia como tive quando pus os pés em Londres. Esta sensação veio logo nos primeiros passos. Minto – os passos iniciais entre a estação Victoria (onde as linhas verde e amarela cruzam com a linha azul claro) e o hotel, de noite, foram apressados e causaram um certo estranhamento. Este trajeto, porém, não conta – ele é parte do que chamo de burocracia das viagens (traslados, hotel, aeroporto, trem, hotel, etc).
Valeu mesmo o dia seguinte, valeram os primeiros passos no dia seguinte. Na manhã seguinte. Passos de alguém encantado, que olhava à esquerda quando devia olhar à direita (ou vice-versa); que via nas ruas o agito de uma metrópole que dita moda e tendências, uma “metrópole vanguardista”, e que se depara na esquina seguinte com tradições e construções milenares, descaradamente conservadora porque “monárquica”.
Outras grandes cidades do mundo são um monte de coisas como a capital inglesa. Nova York, por exemplo, também cria modismos, mas não tem rei nem rainha. Paris, idem – a moda está lá, sendo feita e refeita, mas a monarquia ficou guardada nos livros de história. E isto, um rei (ou rainha, ou ambos) faz toda a diferença, afinal? Naturalmente que não! Londres é também fria e cinza.
E por que um ar tão... tão... tão frio é capaz de dar a um lugar algum charme ou encanto ou valor? Não sei, mas o fato é que Deus não fez a capital inglesa descolorida à toa (em tempo, já que toquei no nome dele: “Deus salve a rainha!” (ou o rei). Descolorida? “Você por acaso colocou os pés em Notting Hill? Ou em Camden Town?”, pergunta o Grilo Falante (eu o emprestei da história veronesa por um instante). São pura aquarela – e todas as matizes que podem resultar da mistura de uma dezena de cores.

É isto! Londres é cinza para que tudo o mais ganhe cor e se destaque. Para que tudo pareça mais. É a camuflagem às avessas. A exuberância. Como os ônibus vermelhos, acentuadamente vermelhos, ficariam famosos se não houvesse um fundo cinza, na terra e no céu, para servir-lhes de abrigo? Como o Parlamento ficaria ainda mais brilhante e dourado se não houvesse uma massa cinzenta ao seu redor? Até o Tâmisa, coitado, fica meio cinza naquele cenário, ele que é todo amarronzado.
Mas... E por que é fria? Porque isto tudo combina com árvores desfolhadas típicas do inverno; com gente elegantemente vestida andando pelas ruas, clássicos ou alternativos, jovens ou velhos; com o dourado que está por todos os lados e parece chama que aquece; porque é preciso ser fria por fora para ser calorosa por dentro, nos bares, pubs, museus, restaurantes. E ainda que nada disto fosse verdade, poder-se-ia (recorri à mesóclise porque Londres merece) dizer que é fria porque é fria e ponto. É “cinza e fria”, como disse o personagem. Ou ainda “vanguardista” e “monárquica”, como afirmou a escritora.
Ops, espere pelo sol e pelo céu azul que eles também aparecerão (ora, numa cidade monárquica o astro-rei não poderia deixar de dar sua graça, Vossa Graça). E se ele, o sol, de vez em quando brilha, o céu azulado há de o acompanhar. Porque ninguém resiste a uma passada por Londres, nem que seja para tirar-lhe por alguns instantes, dias talvez, a “pecha” de ser cinza (porque fria seguirá, provavelmente, salvo raros dias de verão).
E ainda que deixe por um momento de ser cinza – e, quiçá, fria -, continuará sendo vanguardista e monárquica porque assim se fez e esta é sua sina. Porque assim estava escrito. “Fiat lux”, ordenou o Criador, “mas deixe Londres fria e cinza e vanguardista e monárquica”, deve ter completado. Estimulante. Ele, o Criador, sabia que ela, a cidade, seria estimulante. Repulsiva, porque indiferente em meio a um turbilhão de gente; acolhedora, porque única (e únicas são as pessoas).
Mesmo quando se mostra descolorida, no cinza do concreto das construções, ou no branco gelado ou num ocre pálido, ou talvez e também no negro dos famosos táxis, Londres é perfeita. Porque simplesmente combina com tudo isto. Tom sobre tom. Ou que seja furta-cor. Nada lhe tira o charme, a elegância, o poder. A capital inglesa realmente merece todos os elogios (e críticas até, porque é democrática embora monárquica, porque sabe ser soberana).
No fundo, estavam todos certos. Londres é de fato uma “metrópole vanguardista e ao mesmo tempo monárquica”, “fria e cinza”. “E eu me sentia em casa...”




* As fotos são minhas e do amigo Cristiano Persona

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