“Ser alemão é uma carga enorme. Devemos aceitar. Não existe
alternativa a isto.”
Bernhard Schlink, jurista e
escritor, em entrevista à “Globonews”
“Não teve professor, livro, documentário ou
reportagem que me ensinasse mais sobre a história da Alemanha (...) do que essa viagem
a Berlim.”
Dany Colares, jornalista e
criadora do site “Feriado Pessoal”
Poucos lugares em todo o
mundo contam tanto a respeito da história do século 20 como Berlim. E de um
modo tão visceral. Tudo está às vistas, sem disfarces ou meias-palavras. Terror
– é o que se lê (e vê) em muitos lugares. As entranhas da humanidade expostas
cruamente. É preciso lembrar para não esquecer. Lembrar para aprender. Aprender
para não repetir.
Esquecer mesmo parece
impossível. “Não existe alternativa a isto”, confessou numa recente entrevista um resignado Schlink, autor do magistral “O Leitor”. Ao caminhar
pelas ruas de Berlim, já não importa quem serviu, quem incentivou, quem não
impediu, quem afinal se omitiu - como bem coloca o escritor. Está gravado na
história, eis uma verdade imutável. “Devemos aceitar.”
Tão visceral quanto o que se
vê é o que se sente. As imagens vão surgindo aos poucos, vão se revelando ao
sabor dos passos, um encontro a cada esquina. A empolgação inicial de cada
descoberta (“Olha, aqui passava o muro!”) vai dando lugar a um emaranhado de
questões, finalmente traduzidas em uma única palavra – uma pergunta na verdade,
uma incômoda pergunta - exposta no final daquela barreira de concreto e ferro
que separou em dois mundos uma mesma cidade, um mesmo povo: “Why”.
Não existe resposta. Talvez
seja possível falar da insanidade humana – mas e os milhões que permitiram?
Talvez seja razoável falar de um sentimento coletivo reprimido de inferioridade
– mas nem isto será suficiente para entender. Certamente, não há um motivo
único que levou ao nascimento e à ascensão do nazismo no solo alemão e tudo o
que dele decorreu.
A resposta certamente não
virá; a pergunta ficará martelando na mente por um bom tempo. Hoje, mais de
seis décadas após o fim da Segunda Guerra Mundial, não é exatamente uma
resposta que busca o povo alemão. “Devemos aceitar.” O que importa agora
é contar a história e é para isto que estão lá os rastros marcados no asfalto
por paralelepípedos e, a cada certa distância, placas indicando o traçado do antigo
“Berliner Mauer” - o Muro de Berlim.
Também estão lá a Topografia do Terror e o Check Point
Charlie (atenção: o nome não faz referência a pessoa alguma; é apenas a forma
como a letra “c” é chamada no alfabeto fonético, usado por exemplo na aviação e
pelos militares), uma das barreiras que serviam como postos de fronteira
dividindo a Berlim oriental da ocidental. Estes são os pontos principais de uma
jornada que se espalha por toda a cidade. Da Kaiser-Wilhelm-Gedächtniskirche, a
igreja construída no final do século 19 e destruída na guerra, cujos destroços
permanecem expostos como feridas, às cruzes presentes numa das esquinas do
Tiergarten, o manto verde local, no cruzamento da Scheidemannstrasse com a
Ebertstrasse, homenageando aqueles que morreram tentando simplesmente
atravessar uma via cortada por um muro naquilo que até outrora fora sua cidade,
uma única cidade para todos.
Hoje, o Check Point Charlie se transformou quase numa
Disneylândia, com soldadinhos fantasiados segurando a bandeira dos Estados
Unidos e se oferecendo para fotos com os turistas, ávidos por um registro que
deveria ser histórico, mas virou uma alegoria distante, bem distante do drama
vivido ali por décadas. Quer uma dica? Leia a placa próxima que informava sobre
o acesso ao setor norte-americano da Berlim dividida pós-guerra, visite a
exposição com fotos do período e o museu na esquina.
É no chão, porém, que está a marca mais dura do passado: o
traçado do antigo muro. Acompanhe-o por uma rua lateral, a Zimmerstrasse. Repare
nas fachadas dos prédios, pelo menos um deles - hoje uma loja - traz uma
pequena foto de como era a área no período conhecido como Guerra Fria. Siga até
a esquina da Wilhelmstrasse. Ali está parte do muro, cinzento, ainda de pé. Ali
começa a Topografia do Terror, uma espécie de museu a céu aberto com restos de
um antigo e fúnebre túnel.
A passagem - então subterrânea, hoje exposta - servia de
ligação com os escritórios da polícia secreta nazista, a temida Gestapo; da SS
(organização paramilitar de sustentação do nazismo) e de uma espécie de
ministério da Segurança. Por ali passaram, a partir de 1933 e durante todo o
chamado Terceiro Reich, os prisioneiros políticos levados para “interrogatórios
intensivos” – o eufemismo da Gestapo para a tortura.
A história do lugar é contada por meio de textos e fotos
numa crueza indescritível. Não se poupam palavras (as “vítimas do terror
nazista”) e imagens. Está tudo lá – do desfile triunfal de Hitler ao olhar
aterrorizado (e aterrorizante) de um prisioneiro.
A prisão à qual o túnel dava acesso comportava até 50
pessoas em 39 celas individuais e uma coletiva. Ela funcionou no
quartel-general da Gestapo até o final da Segunda Guerra, em 1945. Como o local
servia basicamente para interrogatórios, prisioneiros de outras unidades eram
levados até lá para esta prática. Muitos de lá partiram rumo a campos de
concentração (e daí, via de regra, para a morte).
De acordo com o site da Topografia do Terror, os “interrogatórios
intensivos” podiam durar de algumas horas a meses. Para muitos, o único meio de
“fugir” daquele terror foi o suicídio. As vítimas em geral eram comunistas,
social-democratas, membros de pequenos partidos socialistas e organizações de
resistência, além de representantes de igrejas, como testemunhas de Jeová.
Nos 12 anos de funcionamento do QG nazista, cerca de 15 mil
pessoas passaram por ali como prisioneiras. Três mil delas são conhecidas hoje.
É a história de cada uma dessas pessoas – e de todas as outras milhares que
permanecem anônimas – que a Topografia do Terror ajuda a contar. A resgatar –
desde 1987, quando o local foi aberto ao público. Um resgate que serve como
homenagem à luta que todas empreenderam, ainda que esta luta tenha sido apenas possuir
uma outra visão de mundo.
Em tempos sombrios, este costuma ser um crime capital.
Foi assim na Alemanha nazista. Foi assim ali nos antigos
escritórios da SS e Gestapo. Um crime escondido pela escuridão de um túnel secreto.
Sob olhares nebulosos e omissos de muitos, límpidos e coniventes de tantos
outros. E depois, já no pós-guerra, guardado eternamente sob a sombra de um
muro indigno que dividiu uma cidade. Um muro que permanece como testemunha dos
episódios mais terríveis que a humanidade assistiu (e parte dela protagonizou)
durante o longo século 20.
Schlink tem razão. “Não
existe alternativa a isto.”
Em tempo: é auspicioso constatar que o mesmo muro que um dia dividiu hoje une as pessoas por meio da arte, como no East Side Gallery, já retratado neste blog.
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