Doce como chocolate

A referência está no inconsciente, vem da infância, das boas e tenras e doces lembranças da infância. A paisagem das embalagens de chocolate! Paisagem alpina. Infância, lembrança, chocolate... Uma mistura assim só pode despertar sentimentos inocentes, alegres, pueris mesmo. Uma volta de carro pelos alpes austríacos (podiam ser suíços também) traz à mente uma sensação indescritível. Uma imensa paz irrompe do mais profundo da alma, emanando sua força para toda a paisagem ao redor, ou dela recebendo toda a energia que faz vibrar. Energia vital.
Os picos nevados vão surgindo aos poucos, e de repente. Primeiro você o cassa por entre algumas nuvens, por entre o verde das montanhas, tal qual numa brincadeira inocente de esconde-esconde. Aparece, desaparece, reapacere, esquece... “Olha ali!”, “A foto!”, “Que lindo!”. E não é mais do que um pico nevado, levemente nevado num frio fim de primavera. E as casas vão passando, as singelas casinhas na montanha, as mesmas casinhas das embalagens de chocolate. E as vaquinhas gordas vão surgindo, as vaquinhas que dão o saboroso e inigualável leite dos alpes, as mesmas vaquinhas das embalagens de chocolate. E as curvas vão se sucedendo, e as árvores vão ficando para trás, e novas árvores surgem adiante e... “Olha!!!” – um imenso e imponente pico nevado. Parada vital.
Descem todos, respiram fundo, celebram a vida. “Dolce vita!” Ali nos alpes, na paisagem dos alpes, tudo parece doce. Tudo lembra doce. A doçura do chocolate. Pausa para fotos e mais uma solene e suave inspirada, uma tranquila inspirada. Inspiração, pura inspiração. Pureza combina com infância que combina com alegria que combina com chocolate. Sorriem todos, respiram fundo, celebram a vida. “Dolce vita!”
E de repente o pico nevado se junta a outro pico nevado e agora são dois, e depois serão quatro, e serão tantos. E eles decidem parar de brincar de esconde-esconde, tal como na infância, quando nos cansávamos facilmente de uma brincadeira e partíamos para outra. E agora eles nos acompanham por todo o caminho, nos espiam, compartilham o prazer do prazer de estar em paz. São parceiros de aventura, viraram parceiros desta aventura, melhores amigos, inseparáveis, cúmplices de um momento mágico e único e inesquecível.
Sobe, desce, à esquerda, à direita, adiante. Destino certo, destino incerto. Uma viagem rumo ao desconhecido. Tudo é novo, tudo é belo, tudo é pleno. Tudo é alegria, tudo é diversão. Parada para foto, uma cerca quebrada, um quase-tombo, um quase-acidente, um motivo de risadas. Apenas mais um motivo de risadas. Na paisagem, o lago gelado, de águas verdes e calmas do degelo pós-inverno, e as casinhas de quem tem o privilégio de poder dizer “eu vivo aqui”. Viver... Observação vital.
Os caminhos se estreitam, as palavras rareiam, as placas se amontoam. Um rio surge, bravo, valente, corrente, gelado. E contorna a estrada e o trilho do trem. Carros e trens dividem o mesmo espaço. O pico nevado à frente, belo e imponente. Rumo à montanha, subida em direção ao sonho. Parada. Caminho fechado – choveu demais, demais... A moça atenciosa, solitária, no posto de combustível, esforça-se para entender e explicar: “Sim, foi a chuva”. A estrada foi fechada por cautela por causa dos temporais dos últimos dias, mas há um desvio. E se há um desvio, há esperança. O homem atencioso, solitário, em meio às casinhas das embalagens de chocolate, esforça-se para entender e explicar: “Volte até o rio, a estação de trem...”
Subida, descida, à esquerda, à direita, adiante. Os caminhos se alargam, as palavras sobram, as placas... Bem, as placas já não fazem diferença. Já não há mais destino, o desconhecido já agora é conhecido. Com satisfação, com prazer e alegria. Com a inocência de uma criança que quer um chocolate. Com a pureza de quem está em paz. Novos lagos gelados vão surgir, grandes, profundos talvez, cercados de montanhas e de casinhas de gente feliz. Lagos imensos, silenciosos, como se se estivesse no fim do mundo, num fim de mundo. Mas um fim de mundo doce. Doce como as lembranças da infância. Doce como chocolate. Ali, na paisagem das embalagens de chocolate. Infância, lembrança, chocolate...

PS: esta postagem foi escrita com base numa viagem pelos alpes austríacos rumo a Hallstatt, pequena vila à beira do lago Hallstätter See.
  














* As fotos são minhas, de Lúcia Parronchi e Paulo Venâncio

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