Halifax e a tragédia do Titanic

Todos os dias, pontualmente ao meio-dia, moradores de Halifax ouvem um mesmo som. Para os oficiais da Citadela, uma antiga fortificação militar que fica no alto de um pequeno morro na capital da Nova Escócia, o disparo avisa que é hora do almoço. Para os moradores, o som não tem nenhum significado especial. Talvez sirva para lembrar a história da cidade e do país. 
A Citadela, no formato de uma estrela de oito pontas, foi concluída em 1856 e é bem parecida com a de Quebéc. Foi feita para proteger a costa do país de eventuais ataques norte-americanos, que nunca ocorreram.
Embora nunca tenha sido atacada, a Citadela, ou Forte George, como também é chamado em homenagem ao rei George 2° da Inglaterra, ajuda a contar a história de uma nação surgida de uma série de lutas, principalmente entre franceses e ingleses.






 

Eram quase seis horas da tarde e os flocos de neve começavam a cair com mais intensidade em Halifax. Ao contrário da região de Quebéc, que tem uma colonização marcadamente francesa, na Nova Escócia a influência é maior dos britânicos, ingleses, irlandeses e escoceses.
Esta influência é vista na forte presença da cultura celta na cidade, como a cruz. E nos pubs!




A Nova Escócia, porém, não escapou da disputa entre britânicos e Franceses. Os dois países reivindicavam a posse da região, que chegou a ser parte da chamada Nova França até meados do século 18, quando foi dominada pelos britânicos.
A capital, Halifax, foi fundada em 1749. Hoje, tem 400 mil habitantes. É uma cidade média para os padrões brasileiros, mas bem mais tranquila. Como pela manhã na praça em frente à Igreja Anglicana Saint Paul.




Halifax é uma importante base naval, inclusive para a marinha canadense. Seu porto recebeu 252 mil passageiros no ano passado e movimentou oito milhões e 600 mil toneladas de carga. Menos do que o registrado nos quatro anos anteriores, quando a movimentação média foi de nove milhões e meio de toneladas.


Mas Halifax ficou conhecida no mundo por uma tragédia. Uma explosão ocorrida em 1917, em plena primeira guerra mundial. Eram nove e quatro da manhã de seis de dezembro quando o navio francês Mont-Blanc bateu no navio belga Imo. O Mont-Blanc estava carregado com 226 toneladas de TNT, entre outros explosivos que seriam levados para a guerra, na França. Duas mil e setecentas pessoas morreram e nove mil ficaram feridas. Mil e quinhentas pessoas perderam suas casas com a explosão, que arrasou boa parte da cidade. Foi uma das piores catástrofes com armamentos antes da bomba atômica. 

Um pedaço do navio Mont-Blanc pode ser visto ainda hoje no museu marítimo da cidade.
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A capital da Nova Escócia, porém, tem ligação com uma outra tragédia: a do Titanic. Era o maior transatlântico do mundo. Pesava 46 mil toneladas e tinha 269 metros de comprimento. Saiu do porto de Southampton, na Inglaterra, em 10 de abril de 1912, e deveria chegar a Nova York, nos Estados Unidos. Mas a viagem foi interrompida por um iceberg.
Exemplo da engenharia naval na época, o Titanic entrou para a história como uma das maiores tragédias do século 20. O navio que nunca afundaria, como era apresentado, naufragou às 2h20 da madrugada de 15 de abril após bater num grande bloco de gelo duas horas e quarenta minutos antes - 2.240 pessoas estavam a bordo; 1.517 morreram.
A ligação da cidade de Halifax com a tragédia do Titanic pode ser vista no cemitério de Fairview, onde estão enterradas 121 pessoas que morreram naquela noite. Halifax é a cidade no mundo que abriga o maior número de corpos daquela tragédia.



São três filas de lápides. Corpos que repousam no silêncio de uma manhã branca do inverno canadense. Algumas possuem homenagens, como a de Ernest Edward Samuel Freeman. Ele ficou no navio ajudando a salvar passageiros e acabou morrendo. 





Um outro túmulo chama a atenção. O pequeno anjo brilhante como a neve é um indicativo da história que o túmulo guarda. É de uma criança cujo corpo não foi requisitado por ninguém. Só em 2007, após pesquisas de geneticistas de uma universidade canadense, a criança foi identificada como Sidney Leslie Goodwin, um inglês de apenas 19 meses que morreu junto com a família.




A maioria das lápides tem apenas o nome da pessoa e a data da tragédia do Titanic, a data da morte, 15 de abril. Mas uma dessas lápides virou atração turística. E por um motivo curioso. Ela tem o nome do personagem interpretado pelo ator Leonardo DiCaprio - J. Dawson - na megaprodução de Hollywood Titanic.
A pessoa enterrada na verdade é Joseph Dawson, irlandês que trabalhava na sala de caldeira do navio como aparador de carvão.




Mais 29 vítimas do Titanic estão enterradas em outros dois cemitérios de Halifax. A cidade recebeu parte dos corpos porque o navio contratado pela dona do Titanic, a White Star Line, era de Halifax. Apenas 333 corpos dos mais de 1,5 mil mortos foram resgatados.

Até hoje, as histórias daquela tragédia cruzam a vida dos moradores. No trem que nos levou até lá, encontramos um funcionário da empresa ferroviária que mora numa bela casa em Halifax. O imóvel, no número 989 da avenida Young, pertenceu ao famoso empresário George Wright. 
"Ele embarcou no Titanic com destino a Nova York, de onde iria para Halifax. E como morreu e não tinha herdeiros, esposa, família, ele deixou sua casa para uma organização de caridade local, de quem acabei comprando”, contou Vernon Cope.



Segundo relatos históricos, George Wright provavelmente comprou a passagem para o Titanic quase na hora do embarque. O nome dele não aparece na lista original de passageiros. A passagem teria custado 26 libras, mas não se sabe em qual cabine Wright ficou. O corpo dele nunca foi identificado.
O atual morador contou que a maioria das pessoas em Halifax conhece a história da casa. Disse também que a única referência ao antigo dono, vítima do Titanic, é uma placa que fica perto da porta principal, do lado de dentro. E quando pergunto o que ele sente na casa, Cope ensaia uma resposta. Para, pensa. E finalmente diz: “Não posso dizer que sinto seu fantasma, seu espírito, mas há um retrato de George Wright perto da porta principal, feito por volta de 1900, então parece que ele ainda está na casa cem anos depois.” 

* Texto original de reportagem escrita para o programa "Matéria de Capa" (TV Cultura, dom., 19h)

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