E assim, de porta em porta, câmara após câmara, avançamos. Até que a última porta se abriu para um amplo salão, antigo refeitório dos monges dominicanos. Um local espantosamente simples para o tesouro que guarda. Ali, à direita, praticamente à meia luz, exposta há mais de 500 anos, “Il Cenacolo Vinciano”, “The Last Supper”, “A Última Ceia”, obra-prima do mestre renascentista Leonardo Da Vinci.
Pintada diretamente na parede para ornamentar o refeitório do convento de Santa Maria delle Grazie, em Milão, “A Última Ceia” é uma sobrevivente. Manteve-se apesar da agressão dos monges que, em 1652, decidiram alargar a porta que levava à cozinha, danificando uma parte da pintura. Resistiu à ocupação pelas forças de Napoleão em 1799 e – quase milagrosamente – aos ataques aliados na noite de 15 de agosto de 1943, durante a Segunda Guerra Mundial. Suportou – bravamente - a ação do tempo, que vem apagando os traços originais (os primeiros registros de que a pintura começava a se deteriorar datam de 1517 e são atribuídos a Antonio de Beatis; em 1566, Giorgio Vasari escreveu que “do original de Leonardo ... agora só se pode ver uma mancha”).


A olho nu, a pintura parece ter sido molhada – é a umidade da parede que a danifica. Assim são as já apagadas cores, que alternam pontos fortes e fracos. O fundo brilha, iluminado pela paisagem que se vê pelas janelas. Há uma luz incidente na lateral direita. O efeito luminoso se soma à profundidade (marca genial dos renascentistas) de modo tão bem acabado e harmonioso que tem-se a nítida impressão de que somos parte daquele cenário, que estamos ali fechando o ambiente.
Ao centro, já sem os pés - amputados pela porta alargada pelos monges -, Jesus aparece absorto em meio à discussão dos discípulos após a revelação da traição que estaria por vir. Em grupos de três, eles conversam. “Serei eu, Senhor?”, ouve-se diante do movimento criado pelas mãos habilidosas de Da Vinci. De perto, observam-se detalhes que escapam a uma visão desatenta. A toalha da mesa, por exemplo, não é puramente branca. Possui delicadas rendas azuis.

Outros aspectos reforçam essa tese – e as consequentes teorias. É o caso das cores das roupas de Jesus e João, semelhantes, porém inversas. O apóstolo veste azul com um manto vermelho; Jesus o oposto, um traje vermelho sob um manto azul. Seria mais um sinal, segundo a teoria, do feminino e do masculino. Também chama a atenção a letra “V” formada pelo braço direito de Jesus e pelo esquerdo de João, algo que não se vê em nenhum outro ponto da pintura. Seria a representação do ventre, conforme Dan Brown.
A figura de João seria mesmo Maria Madalena...?
Não importa. O que valeu foi viver a experiência de um encontro tão raro, profundo e emocionante. E do qual aproveitei todos os instantes. Sob o olhar atento da senhora de cabelos brancos, face fechada, óculos na ponta do nariz, que vigiava ininterruptamente os curiosos naquele salão, ainda parei na saída para dar mais uma – a última olhada. Na “Última Ceia”.
PS: a igreja de Santa Maria delle Grazie fica numa região mais afastada em Milão, uma área residencial e bastante tranquila. Não chega a ser longe, apenas está fora do centro turístico. Por esta razão – e pela dificuldade de conseguir reservar o ingresso para ver a obra de Da Vinci -, muitas pessoas abrem mão de visitar o lugar. É um pecado!
Embora a igreja tenha um interior relativamente simples se comparado ao de outras, num estilo que lembra o mourisco e aparentes mosaicos em pedra, nada – absolutamente nada – substitui a emoção de ver “A Última Ceia”.





* As imagens da pintura e do interior do salão foram retiradas da Internet, respectivamente do Wikipedia e do site "O Pitoresco". Não são permitidas fotos no local.