“Claro que
tudo isso aconteceu há muito tempo e nada parecido poderia acontecer de novo.
Não na nossa
época.”
John Boyne, “O
menino do pijama listrado” (p. 186)
Um pijama.
Não exatamente um pijama. Romântica e inocentemente um pijama. Aos olhos de uma
criança, de um menino. Um pijama listrado, listras brancas e azuis. Surrado. Um
uniforme de pano grosso, rústico. O uniforme do prisioneiro 28.320. Um
número. Sem nome. Sem alma. Sem vida. Uma vida. Muitas vidas. Milhares de
vidas. Perdidas. Vencidas. Levadas. À força.
“O pijama
listrado!” Uma exclamação de espanto. Arrepio. Terror. Dor. Um aperto forte no
peito, um nó na garganta. Incredulidade. Realidade. Dentro daquele armário de
madeira frio e sombrio, um pijama listrado. Calça e blusa, separados, como que
formando um corpo. Um dia alguém esteve ali. Alguém que passou a ser o número
28.320. Alguém que recebeu um carimbo – culpado. De um crime que ninguém sabe
ao certo qual foi.
“A casa nova
(...) ficava isolada num lugar vazio e desolado, e não havia nenhuma outra casa
à vista, o que significava que não haveria outras famílias por perto nem
meninos com quem brincar, fossem amigos ou fossem encrenca.”
Não era
exatamente uma casa, embora fosse uma morada. A última morada. Um campo. De
trabalho. Forçado. “Arbeit macht frei” – “o trabalho liberta”, terrível ironia.
Um campo. De concentração. De gente, de humanos, de histórias, de vidas. Cada
um ali carregava uma história, a própria história. Uma história
que em muitos casos foi perdida, escondida sob um número – 28.320 era o do
prisioneiro daquele pijama.
Um campo. De
extermínio. Corpos amontoados esperando a sua vez para o crematório. Corpos?
Corpos... “Nada além de pele e osso”, mas corpos, gente, humano, ser humano.
Vida. Três mil corpos foram encontrados quando as forças aliadas invadiram o
local em 29 de abril de 1945. Corpos jogados como bonecos, como animais
(mereceriam os animais tratamento assim?). Uns sobre os outros, cena de horror.
Fotografada e eternizada na história, na memória. Uma cena que, descobre-se de
imediato, jamais será esquecida. Não deve ser esquecida.
“(...) Mas,
ao redor da casa nova, não havia outras ruas, ninguém caminhando por lá ou
correndo por ali, e certamente nada de lojas, nem de bancas de frutas e
legumes. Quando fechava os olhos, tudo ao seu redor parecia simplesmente vazio
e frio, como se ele estivesse no lugar mais solitário do mundo. No meio de
lugar nenhum.”
KZ-Gedenkstätte
Dachau. O campo de concentração de Dachau, a poucos quilômetros de Munique, na Baviera.
Não o maior, mas o pioneiro e um dos principais campos de extermínio espalhados
pelos nazistas na Europa. Entre 1933 e 1945, serviu de modelo para todas as experiências
que se viu nos demais campos. Do crematório à câmara de gás. Prisão-base dos
soldados russos. E de judeus, ciganos, homossexuais, inimigos políticos,
testemunhas de Jeová... Por ali passaram cerca de 200 mil pessoas. Quarenta mil
jamais saíram.
O local
chegou a abrigar, numa só vez, cerca de 30 mil pessoas em suas galerias.
Quatro delas eram destinadas a oficinas; outras 28 serviam de acomodação –
fileiras de “camas”, na verdade uma grande armação de madeira tal qual um
armário gigante, de grandes gavetas, como se vê nos filmes. Hoje, o que se vê é
um imenso vazio. O que se ouve é um profundo silêncio. O se sente é um estonteante
estupor.
“(...)
Porém, havia algo a respeito da casa nova que fazia Bruno pensar que ninguém
jamais ria por lá; que não havia motivo para riso e nada com que se alegrar. (...)
e agora estava encalhado nesta casa fria e desagradável, com três criadas
sussurrantes e um servente que era a um só tempo infeliz e bravo, onde ninguém
parecia ser capaz de rir novamente.”
E só se
enxerga e se sente e se respira tristeza por onde quer que se olhe, por onde
quer que se vá. Das salas abandonadas, vazias, frias e cinzentas que serviram
de escritório ao imenso terreno onde antes ficavam as galerias, hoje apenas
amontoados de pedra; dos prédios de tijolos onde ficavam os fornos de assar
gente à sala com ralos no chão e pequenas aberturas superiores de onde saía gás;
das câmaras de desinfecção às guaritas de vigilância que guardavam espaços
entre o fosso e as cercas de arame farpado e eletrificadas – nada ali é motivo
para sorrir.
Dachau, a
cidade que emprestou seu nome ao campo da morte, simbolizou o lado mais sombrio
e macabro da ascensão e queda de Hitler e do nazismo. Ajudou a escrever o
capítulo mais cruel da história da humanidade no século 20. Uma página - espera-se definitivamente virada – para servir de apoio à luta incessante pela paz e
liberdade no mundo.
***
Esta
postagem é a minha modesta homenagem à memória das milhões de pessoas que perderam
suas vidas e sofreram em razão das atrocidades do nazismo. Pessoas como o
prisioneiro 28.320, cujo uniforme está exposto no campo de concentração de
Dachau. Uniforme que me levou, na fração de um segundo, a uma viagem pela
história de um menino, o menino do pijama listrado.
Quem já leu
o livro do irlandês John Boyne ou viu o filme baseado na obra certamente sentirá
– como eu senti – uma emoção diferente ao descobrir aquele uniforme guardado em
um armário. Ele surge de repente, em meio à exposição de fotos, placas e
objetos que contam a história daquele campo.
Sempre tive
a curiosidade de visitar um campo de concentração. Não por entusiasmo de
turista – o local definitivamente não suscita entusiasmo – e sim pela paixão
por história, pela vontade de enxergar com meus próprios olhos o
que sempre vi na TV e no cinema e li nos livros, jornais, revistas e na
Internet. Sabia que seria uma experiência diferente e única. Sabia que ela
despertaria um sentimento que não encontra palavras para ser descrito.
É preciso,
sim, ter estômago para ultrapassar o portão que separava a liberdade da prisão,
a vida da morte, o portão que guarda a famosa inscrição comum a todos os campos
de extermínio – “o trabalho liberta”. Literalmente o fim da linha (era sempre
no portão dos campos que terminava a linha dos trens que levavam os
prisioneiros).
Em certo
momento, pede-se um obsequioso silêncio, afinal há locais que serviram
de cemitério, não exatamente na acepção que conhecemos, e sim um lugar onde
foram enterrados os corpos que escaparam dos crematórios. Há gente enterrada
naquele solo.
Diariamente, às quatro horas, um sino toca no campo de Dachau. E por quem o sino toca? Eis a angustiante pergunta.
Diariamente, às quatro horas, um sino toca no campo de Dachau. E por quem o sino toca? Eis a angustiante pergunta.
Andar por
aquele lugar, ver os dormitórios, as fotos, a pia abandonada num canto sujo e
mal iluminado, ouvir as histórias, pensar em cada um que em vão tentou (seria a derradeira esperança de encontrar um fim?) cruzar as cercas,
observar os vasos sanitários dispostos lado a lado, o local do banho, tudo
desprovido de alma e personalidade, olhar os fornos, imaginar a
fumaça escapando pelas chaminés inevitavelmente nos faz pensar. E uma perturbadora questão
fica martelando na mente: por quê?
É chocante
constatar que tudo foi real – talvez inconscientemente pensemos que no
fundo tudo não passava de um filme. Sente-se um soco no estômago, capaz de
derrubar o mais forte dos pugilistas. Lembrei do que me disse certa vez uma
professora ao relatar a visita que fizera a um campo de concentração: “A gente
sente o cheiro de morte”. É isto, cada pedaço daquele lugar recende a morte.
Ao mesmo
tempo, e paradoxalmente, tem-se um fio de esperança. Aquela tragédia talvez
seja a evidência mais concreta de que nada daquilo jamais poderá se repetir. “Não
na nossa época.”
** As fotos são minhas, de Lúcia Parronchi e Paulo Venâncio