Um dia de chuva em NY

Aquela sexta-feira, 11 de setembro, amanhecera cinzenta e melancólica em Nova York. Eu, porém, estava incrivelmente feliz – e se Nova York é mais um estado de espírito do que uma cidade, o dia me parecia ensolarado. Na terra das oportunidades, logo descobri que a chuva – alvo de pensamentos maledicentes dos turistas – motiva o empreendedorismo daqueles que sonham “fazer a América”. Bastaram alguns passos pela calçada e na esquina já me esperava um vendedor de guarda-chuva. “Putz...”, pensei, amolação logo cedo. “Putz!”, exclamei, um vendedor providencial.
Nova York é assim, muda ao sabor do vento. E o vento que se apresentava naquela manhã anunciava chuva. Não hesitei em deixar cinco dólares com o vendedor. Escolhi o modelo mais barato, talvez nem usasse aquele objeto. Usei-o mais rapidamente do que esperava. Os chuviscos começaram e eu simplesmente agradeci por ter encontrado aquele vendedor naquela manhã naquela esquina da 6ª Avenida com a Rua 34.
Era uma chuva fina e fria. Peguei o metrô rumo ao norte, perto do Harlem. Desci na Broadway-Universidade de Columbia. Dei de cara com o Departamento de Jornalismo (seria algum sinal do destino?). Caminhei pela região em busca de duas igrejas, a Riverside e a Catedral de São João, o Divino. Riverside é, aliás, o nome do parque que margeia o Rio Hudson. Busquei abrigo em Deus. Naquele momento, abrigo da chuva. Entrei nas igrejas. O mesmo chuvisco que me levou até Deus me afastou do Riverside Park. Segui caminhando. A chuva alternava momentos de trégua com demonstrações de força – para os quais, confesso, não me preparei adequadamente.



Passei pelo Morningside e cheguei ao Central, ambos “parks”, mas só um famoso. Era a entrada oeste, pouco usual para os turistas, no lado oposto à região da Times Square. No começo foi uma caminhada agradável. Manhã nublada, parque vazio, algumas árvores caídas, áreas em recuperação após um temporal que causou danos, segundo informava uma placa. Vez ou outra surgia um corredor matinal. Corpos atléticos, desafiavam a chuva e o frio em seus moletons e camisetas, todos inusitadamente satisfeitos. Eram os únicos sinais de vida humana por ali. De vez em quando passava um carro, da segurança ou da equipe de manutenção do parque. Ah, também passavam os esquilos – ah, os esquilos, estes bichinhos espalhados por todo o país, os verdadeiros “yankees”.



Subi, desci, a chuva insistente me fez limpar as lentes do óculos algumas vezes. Vi uma professora (ou seria uma babá?) com suas criancinhas, todas amigavelmente amarradas umas às outras, felizes num passeio ao Central Park, debaixo de chuva. Vi uma jovem mãe levando seu filho no carrinho. Ela morena, ele um espécime “blond hair”. Personagens de uma manhã cuja solidão o Central Park quase vazio acentuou.

Minha previsão era cruzar o parque rumo ao leste, em direção à 5ª Avenida, numa caminhada de meia hora. Mais de uma hora depois eu ainda circulava de um lado para o outro e nada de achar a saída... Circular. Poucas vezes um verbo foi tão apropriado. A sensação era de estar andando em círculos. Andava, andava, andava rumo ao leste e quando chegava à calçada, lado errado. Voltava, mudava a direção e saía no mesmo lugar. Fui e voltei tantas vezes que já não sabia se me divertia ou me angustiava com aquela situação. Não queria admitir, mas a realidade é que eu estava inacreditavelmente perdido no Central Park.
Avistei o grande lago, Jacqueline Kennedy Onassis Reservoir. Ainda errante, decidi contorná-lo. Até que um casal veio em direção contrária exibindo uma sacola branca na qual pude ler “Guggenhein Museum”. Pronto, bastava seguir em frente. Por cautela, decidi acompanhar um grupo de estudantes que apareceu por ali. Justamente na hora em que me encontrei, a chuva apertou. Na beira do lago, o vento forte acentuava o frio e agitava a água. Imaginei um tsunami. Os pingos, agora mais fortes e constantes, dificultavam a caminhada e a visão. Não a ponto de impedir que eu identificasse aquela estrutura cheia de curvas brancas, ascendentes, desafiadoras, estranhas numa cidade quadrada. Eis o Salomon Guggenhein Museum. E o guarda-chuva pôde finalmente ser recolhido.


Contudo, o “meu” 11 de setembro reservava mais. Na saída do museu, um vento forte, daqueles que fazem a capa do guarda-chuva virar do avesso, marcou o fim daquele produto comprado poucas horas antes. E não havia a quem reclamar. Como mágica, um novo vendedor surgiu. E tive que desembolsar desta vez dez dólares na tentativa de obter um exemplar aparentemente mais resistente.
Logo descobriria que a desejada resistência não passou de aparência. O novo guarda-chuva suportou apenas a caminhada pela 5ª Avenida no trecho onde Nova York ferve (e a que, para muitos turistas, a cidade se resume). Foram dezesseis quarteirões à procura de um poodle branco perdido dois anos antes (isto já é outra história). Uma caminhada assim para descobrir que entre todas as raças de cães possíveis, só o poodle não estava lá na FAO & Schwarz, a famosa loja de brinquedos na esquina leste do Central Park.
Durante essa peregrinação, muitas senhoras e senhores elegantes em seus ternos e vestidos comprados ali mesmo, num dos metros quadrados mais caros do mundo, passaram por mim dividindo o mesmo drama, um guarda-chuva chinês que mal suportava a chuva – menos ainda as rajadas de vento que começaram a se manifestar. A cada esquina, a cada semáforo, uma cena se tornava comum: dezenas de turistas, ávidos por passeios e compras, de olho nas tentadoras vitrinas da 5ª Avenida, contorciam-se para combater o que naquele momento virou um temporal. E para, em vão, tentar impedir a destruição do frágil guarda-chuva chinês.
Sem poodle, a FAO ao menos serviu para me guardar da chuva, algo que o guarda-chuva não fazia mais.
Tão logo o temporal deu uma trégua, reiniciei minha caminhada, desta vez cruzando a margem leste do Central Park rumo ao Columbus Circle, à procura do Museum of Art and Design, o MAD. Em busca de um abrigo seguro. Tive tempo ainda de parar no meio da 5ª Avenida para registrar o (pouco) movimento, mas a chuva – que decididamente escolheu protagonizar esta história – insistia em me fazer companhia. E o guarda-chuva comprado no Guggenhein não resistiu os três longos quarteirões que separavam a 5ª da 8ª Avenida, as esquinas do acesso leste do Central Park. E lá se foi para a lixeira, onde encontrou seus pares, tristes objetos abandonados por seus donos. Assim, a cada esquina, a cada lixeira, minha solidão se foi. Não só a chuva me acompanhava, como também a sensação de não ter sido o único a ajudar alguns vendedores a “fazerem a América” naquele 11 de setembro.


Eu ainda tomaria mais um pouco de chuva e frio até ser acolhido pelo MAD, não sem antes dar uma parada estratégica no Time Warner Center. Estava a cinco quarteirões do “Late Show with David Latterman”. Não quis, porém, vê-lo. Àquela altura, já havia descoberto prazer nos desafios de passar um dia chuvoso em Nova York. E já havia feito da chuva uma agradável companheira. Porque em Nova York nada pode ser mais triste do que não se divertir. Até debaixo de chuva!



Um encontro com a história

Quando decidi ir ao Palácio de Queluz, perto de Lisboa, sabia que estava indo para um encontro. Um encontro com o nosso passado, com a nossa história. E poucas vezes um encontro foi tão correspondido como naquela ocasião – isto mesmo, poucas vezes um lugar respondeu tão bem a um sentimento.
De longe, no declive que leva ao palácio, Queluz parece decadente. E é. Algo comum em países que aboliram a monarquia. Mas algo naquele lugar emana vida. E este algo é a certeza de que nossas vidas um dia passaram por lá.
Construído em meados do século 18, o palácio inicialmente foi uma espécie de residência de verão do príncipe consorte. Virou casa da família real portuguesa no final daquele século, após um incêndio ter atingido o Palácio da Ajuda. Dali até 1807, ano em que a corte deixou Portugal e rumou para o Brasil fugindo das tropas de Napoleão, os corredores e cômodos de Queluz protagonizaram o que de mais importante aconteceu politicamente na metrópole – que tinha a distante Terra de Santa Cruz, a esta altura já chamada de Brasil, como uma de suas colônias, a maior e mais importante delas.
Naquele palácio, andaram a rainha dona Maria 1ª, a Louca, e seu filho, o então príncipe regente (e depois rei) dom João 6º, nascido João Maria José Francisco Xavier de Paula Luís António Domingos Rafael de Bragança. Foi ele que decidiu transferir a sede da coroa para a colônia – o que mudou a história de Portugal e do Brasil.
Duzentos anos após a chegada da família real ao Rio de Janeiro, dom João ainda estava lá em Queluz. Num canto da parede, ao fim de um longo corredor que faz curva para a direita, repousa a imagem do soberano, com seu cabelo aparentemente engomado e grisalho e seus olhos aparentemente verdes, suas longas costeletas e seu traje de gala, talvez muita gala para aquele que é considerado covarde por muitos portugueses e esperto por outros. Gala excessiva para uma corte classificada de perdulária pelo jornalista Laurentino Gomes em sua obra “1808”.
Uma imagem “dedicada e apresentada a Sua Magestade (sic) Fidelíssima”, àquela altura “apenas” rei do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, posteriormente d´Aquém e d´Além-Mar em África, Senhor da Guiné e da Conquista, Navegação e Comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia e Índia.

Após a curva em que encontro dom João, surge um quarto ricamente ornamentado, num momento em que Queluz lembra Versalhes. O quarto do rei, onde nasceu (em 12 de outubro de 1798) e morreu (em 24 de setembro de 1834) Pedro de Alcântara Francisco António João Carlos Xavier de Paula Miguel Rafael Joaquim José Gonzaga Pascoal Cipriano Serafim de Bragança e Bourbon, simplesmente dom Pedro 1º (o 4º de Portugal), imperador aqui, rei lá. Aquele mesmo do “independência ou morte”, o grito que provavelmente nunca foi dito nas margens plácidas do Ipiranga.
No quarto, uma cama relativamente pequena para um homem pequeno (no tamanho mesmo, como eram, via de regra, os soberanos daquela época), a tradicional cortina cobrindo e cercando o leito, decorada com flores, duas espécies de criados nas laterais, uma foto, uma cadeira, tapeçarias e pinturas, um lustre aparentemente de cristal, muito dourado reluzindo a ouro.
Para um rei, um cômodo relativamente pequeno. Pudera. Ali era apenas e tão somente um local de repouso. No Palácio Real de Madrid, por exemplo, os tantos Carlos que lá moraram e mandaram tinham um cômodo para se vestir, um outro para jantar, um outro para orar e finalmente um para dormir – sem contar um para a guarda. Eram os aposentos reais. Em Queluz não devia ser diferente.
O tamanho diminuto (para um palácio, que fica claro) em nada reduz aquele quarto. É um cômodo de respeito, resplandescente, belo mesmo! Um lugar guardado por querubins e figuras mitológicas. Com uma faixa de seguidas flores (aparentemente flor-de-lis, símbolo da nobreza) e estrelas azuis.

À frente daquela cama, que um dia fora um leito de vida e de morte, muitos passavam. Eu parei. Ali, naquele momento, àquela hora, deu-se meu encontro definitivo com a história. Era isso, e somente isso, que eu pensava. Um pensamento que me envolvia, que tornava irrelevante tudo ao redor. Por um instante, um longo instante, senti-me parte daquele enredo. E ali deixei um pouco de mim. Para todo o sempre. Amém.

* A litografia que reproduz dom Pedro 1º morto em seu leito é do século 19 e está atualmente no Museu do Primeiro Reinado, no Rio de Janeiro.

Postagem em destaque

A Veneza verde do Norte

A tecnologia que empresas suecas levam mundo afora hoje em dia não é um acaso. O país tem vocação para invenções e descobertas. O passado v...

mais visitadas