Alexandre Salvador, jornalista, na reportagem “O alter ego
do homem” (“Veja”, ed. 2.302, ano 46, número 1, 2/1/13, p. 79)
Sempre que viajo ao Velho Continente, ou a grandes capitais
do mundo, surge um pensamento recorrente: felizes os que nascem ou moram nesses
lugares, pois têm a oportunidade de serem educados vendo, tocando, sentindo
aquilo que a grande maioria de nós só conhecemos pelos livros de história. Nos
grandes museus do mundo, é comum encontrar grupos de crianças e jovens tendo
aulas defronte a quadros e esculturas famosos, como a Monalisa, de um tal
Leonardo.
Para os brasileiros, aprender assim só mesmo sendo turista.
Foi o turismo, por exemplo, que me permitiu entender - num sentido mais amplo -
os valores do Renascimento. A busca da perfeição das formas e a valorização do
homem, física e espiritualmente. Definições que, diante de grandes obras, materializam-se
à nossa frente. E o que isto tudo tem a ver com o pênis do Davi? Tudo! Ele é o
símbolo do que o Renascimento representou em termos de valores e ideais
artísticos e estéticos. E só quando se chega perto dele, do dito-cujo (o Davi,
não o pênis), é que se tem a exata noção do que aquele período da história
significou para as artes.
Cita o jornalista Alexandre Salvador na reportagem
mencionada na frase que abre esta postagem: “Entre os gregos antigos, a nudez
masculina, incluindo a exposição dos genitais, era comum. A tradição se manteve
no Império Romano até o triunfo do cristianismo. (...) Numa reação à liberdade
da Renascença, a Igreja Católica ordenou que os genitais das obras de arte
fossem cobertos por folhas de parreira. (...) Em 1857, a rainha Vitória recebeu
de presente uma réplica do Davi, de Michelangelo, e a doou ao hoje Museu
Victoria and Albert. Informados do desconforto da rainha com a nudez da
escultura, os zelosos funcionários do museu logo providenciaram uma folha de
parreira esculpida em mármore”.
Por sorte (e uma boa dose de bom senso e desprendimento em
prol da arte), a escultura original – desde 1873 repousando na Galleria dell’Accademia
de Florença, a salvo das intempéries do tempo – não foi alterada. Davi está lá
tal qual executado pelas mãos hábeis e mágicas do senhor Buonarroti Simoni. Com
o dito-cujo (agora sim o pênis) à mostra.
Reconheço um certo abuso ao recorrer à metonímia para mencioná-lo
(o pênis, não o Davi, ou uma parte deste) como símbolo dos valores e ideais
renascentistas. Afinal, para aquela escultura, o genital é detalhe. O Davi é
muito mais – e tem muito mais a mostrar. A começar pelo tamanho (da escultura, que
fique claro). Ainda que exposta numa base, ela é bem grande (exatamente cinco
metros e dezessete centímetros). Deixa-nos pequenos (teria sido exatamente esta
a intenção do artista?). As mãos, por exemplo, são imensas!
Manter as proporções humanas numa obra tão grande foi, talvez,
um dos primeiros desafios do artista ao dar forma ao bloco de mármore de Carrara
que descansava havia um quarto de século no pátio de Santa Maria del Fiore, a catedral
florentina. Tratando-se de Michelangelo, porém, a tarefa parece fácil. É
impossível não se impressionar diante da grandeza do Davi. É inevitável
prostrar-se diante dele e observar cada detalhe, dos músculos da panturrilha ao
abdômen; as veias, artérias e unhas; das coxas às nádegas; o umbigo e o peito; os
ossos sobressalentes, como as junções das falanges e metacarpos nas mãos; da
feição jovial ao... pênis. Sim, ele também, ora (afinal, é com uma frase sobre
o furor causado pelo genital de Davi que este texto começou...).
E por falta de um (Davi, não pênis, ou também este), há
dois. No final do século 19, uma réplica foi colocada no lugar do original, bem
em frente ao Palazzo Vecchio, na Piazza della Signoria, centro político de Florença.
Foi uma forma de preservar o trabalho de Michelangelo, já que a escultura estava
há quase quatro séculos ao ar livre, exposta ao clima e a possíveis vândalos.
Desde que foi revelada ao mundo em 8 de setembro de 1504, a
gigantesca estátua com a anatomia crua à mostra (pênis inclusive) tem
despertado a atenção de milhões de pessoas. Notadamente pelo seu valor
artístico, um dos trabalhos mais destacados de um dos mestres do Renascimento e
gênio da humanidade. Artista que carrega no nome referência a um arcanjo. Terá sido
inspiração divina a execução de obra tão próxima da perfeição? Fé e ciência
juntas - sabe-se que o famoso escultor era estudioso do organismo humano – em favor
da arte. Michelangelo conseguiu com aquela estátua deixar ao mundo a herança do
seu tempo. De modo tão singular e belo.
Certamente, o pênis de Davi continuará causando furor ainda
por séculos. Salve Michelangelo!
PS: a obra é citada tanto como “Davi” quanto como “David”.
Adotei a forma usada na reportagem mencionada na abertura da postagem.
Em tempo: no Japão, o pênis de Davi também causa furor - e problemas. Veja aqui.
Em tempo: no Japão, o pênis de Davi também causa furor - e problemas. Veja aqui.