“(...) em Nova Orleans é difícil escapar da força permanente
da história.”
Tom Downs em texto no blog
“Viagem & Cia”
Uma série de
palavras adequadas: difícil – escapar – força – permanente – história. Pensadas
assim, uma a uma, a frase ganha ainda mais sentido. Difícil é o que nos
persegue; escapar pressupõe uma luta, não necessariamente dolorida; força fala
por si só, algo além do comum; permanente é o que não muda; e história é...
simplesmente história. E tudo isto cabe perfeitamente a Nova Orleans.
Talvez poucas cidades dos
Estados Unidos tenham tanta personalidade quanto NOLA – assim carinhosamente
chamada por muitos. A sigla une as duas letras iniciais da cidade às que
indicam o estado – Louisiana. Naturalmente, muitas cidades norte-americanas -
das metrópoles Nova York e Los Angeles às menores como Key West – têm suas singularidades.
Talvez poucas delas, porém, reúnam tantos atributos, da arte à história, da
música à gastronomia, da arquitetura ao estilo de sua gente, como Nova Orleans.
Em nenhuma delas isto tudo é tão marcadamente presente, permanentemente e de
modo tão... forte. Esta herança é o seu elã.
Porque você pode pensar em Nova
Orleans como o berço do blues (ou da região que merece tal crédito). Tom Downs
definiu bem em seu artigo de onde saiu a frase que abre esta postagem: “O Mississippi
pode não parecer um lugar para passar algum tempo, mas se algum dia você já
esteve sob o feitiço do blues do Delta – os sons provocadores e compulsivos de
Robert Johnson, Charlie Patton e Muddy Waters – você entende essa força”. E Downs
completa para que não paire dúvida: “Se alguma cidade tem o direito de cantar o
blues, essa cidade é Nova Orleans, que ainda está cambaleando corajosamente em
suas pernas, depois da passagem do furacão Katrina”.
Aí vem outro atributo: a cidade está na rota dos grandes furacões que se formam todos os anos no mar do Caribe. É a porta de entrada, estando portanto num estado permanente de alerta e de risco. Katrina, Isaac, a cada ano um novo nome assombra os locais, remexendo a poeira da memória e trazendo à tona lembranças amargas de tempos difíceis, numa conexão indesejada e forçada com o passado de lutas, aquelas cantadas no blues, outras lutas, mas cujos elementos – força, esperança, etc – unem o ontem e o hoje.
E quando os nomes chegam, não os Johnson ou Patton, mas os Katrina e Isaac, trazem a destruição para mais uma vez provocar a força que move aquele lugar. Nova Orleans resiste. Há séculos. Casas são reerguidas, ruas e estradas reconstruídas e, acima de tudo, a esperança é renovada. As marcas inevitavelmente ficam como feridas que nunca cicatrizam – ou como testemunhas do destemor daquela gente. A tragédia se soma aos atributos da cidade (“é difícil escapar da força permanente da história”).
O blues e os furacões têm um ponto em comum em Nova Orleans: o Mississippi. “O rio turvo e largo”, nas palavras de Downs, “mal é visível enquanto serpenteia pelo interior americano”. Mas ali é onipresente. Ainda que esteja “muito longe da agitação que tinha nos anos 1920 e 1930”, o rio e seu delta são indissociáveis da música e da cidade. Ou vice-versa. Como também os furacões, já que é no encontro das águas do rio com o mar a origem do jato mortífero que alaga, destrói e mata de tempos em tempos. E o que sobra vira inevitavelmente atração...
Um lugar com tantos atributos
seria por si só motivo de visitação, mas Nova Orleans possui mais. “As
ruas são a melhor galeria que a cidade tem (...)”, escreveu Seth Kugel, do “New
York Times Syndicate”. O mais básico espaço da
vida urbana e social de qualquer localidade, das menores às maiores, tem em
NOLA algo diferente. A simbiose da arquitetura e da gente local, com o tempero
da história, confere à cidade um ar especial e único.
A rua ganha vida com a
arquitetura formidável e diversa, ainda que nenhuma pessoa esteja à vista. Cada
bairro possui uma aparência característica, fruto das influências sofridas ao
longo dos tempos, seja da colonização espanhola ou da presença francesa ou
ainda da cultura crioula, formando uma babel de estilos. “As casas
históricas que pontilham Nova Orleans são uma atração à parte e podem ser
apreciadas de graça – desde as construções coloridas e cheias de detalhes de
Bywater até as versões ‘créole’ do Treme, passando pelas sacadas elegantes do
Bairro Francês”, citou Kugel.
Quando às ruas e casas se acrescentam elementos humanos, como
bandeiras, floreiras e decorações pascais, as fachadas de madeira e as grades rebuscadas
em estilo colonial acentuam a energia que se sente em NOLA. E quando a tudo
isto se juntam as pessoas - os locais com sotaque próprio, também resultado das
várias culturas (francesa, espanhola, inglesa e africana) que influenciaram a
região, com sua ginga e sua música, com suas cores e odores; e os forasteiros animados,
gente de todas as idades, línguas e credos, tem-se um cenário único: Nova Orleans.
Poucos lugares conseguem unir de modo tão uniforme culturas
tão distintas. Do clássico estilo francês ao irreverente e macabro mundo
crioulo. Com badulaques “voodoos” espalhados por todo canto, a feitiçaria se
faz presente numa das cidades mais católicas do país (a Catedral de Saint Louis
é a mais antiga igreja católica dos EUA), resquício da presença espanhola, todos
convivendo harmonicamente num sincretismo exemplar. E tem ainda magos e gurus,
ciganos e zumbis, bem em frente à catedral, na antiga Plaza de Armas, nome que
lembra os tempos em que Nova Orleans foi a capital da província espanhola.
Quer mais? Na gastronomia, as culinárias cajun e creole - de
influência africana - são típicas. E com uma pitada de pimenta, encontrada aos
montes em dezenas de sabores e rótulos recheados de humor e erotismo, duas características
à flor da pele na cidade do Mardi Gras - a festa de carnaval local, famosa pela
tradição das mulheres (geralmente seminuas) atirarem colares coloridos aos
homens como convite a um “algo mais”.
Ruas e casas, francês e crioulo, negros e brancos, católicos, protestantes e uma boa pitada de magia, tudo isto influenciou a cultura da região que tem Nova Orleans como maior expoente. Passeando por NOLA entende-se que algumas coisas, como o blues, só podiam ter nascido lá. Porque poucos lugares unem de modo tão majestoso uma série de particularidades. Talvez nenhum lugar do modo como Nova Orleans. Downs tem razão... “(...) em Nova Orleans é difícil escapar da força permanente da história.”
* As fotos são minhas e de Carlos Giannoni de Araujo