Igrejas são importantes atrações turísticas. Arquitetura e
história se misturam de tal forma que é impossível contar a saga humana,
notadamente no Ocidente, sem passar por estas edificações. Algumas, porém,
ganham uma dose extra de atratividade devido a supostos mistérios que as
cercam. Lendas, tradições, seja lá o que for – basta uma faísca midiática para
que um templo secundário, às vezes até esquecido, passe ao centro das atenções.
Recentemente (março de 2014), a Basílica de San
Isidoro, em León, na Espanha, foi obrigada a esconder uma suposta relíquia
depois que historiadores divulgaram um estudo apontando-a como o provável
cálice da Última Ceia – ou Santa Ceia, a reunião de Jesus com os 12 apóstolos
na noite que antecedeu a sua prisão, segundo a tradição cristã.
León não é das cidades mais importantes da Espanha, tampouco
sua basílica está no rol das principais igrejas daquele país. De acordo com reportagens,
o tal cálice é atribuído historicamente à infanta
Doña Urraca, filha do rei Fernando 1º, que governou León entre 1037 a 1065.
Enquanto a história
permaneceu assim, era apenas mais uma peça em exibição naquela igreja. Uma peça
com raiz histórica, é verdade, mas nada que justificasse a presença de
multidões ou que fizesse qualquer cristão deixar seu longínquo país para vê-la.
Bastou, contudo, que o cálice fosse apontado como o chamado Santo Graal para
que a basílica passasse a receber turistas de todo o globo, ávidos por ver de
perto uma das peças mais lendárias da história.
O caso não é isolado. A
igreja de Saint-Sulpice, em Paris, também virou alvo de peregrinação turística
a partir de 2003. Tudo por causa da obra do escritor Dan Brown, “O Código Da
Vinci”, que mencionou o templo como detentor de símbolos secretos (bem, não tão
secretos assim...) que levariam ao lugar onde estaria sepultada Maria Madalena
- na lenda (tradição no sul da França), a suposta esposa de Jesus.
(Em tempo: quem quiser saber
mais sobre esta história recomendo a leitura do livro ou uma pesquisa na
Internet, já que não tratarei disto nesta postagem.)
Saint-Sulpice está longe de ser uma das principais igrejas da
capital francesa, embora seja a segunda mais alta. Para uma cidade que sedia
Notre-Dame, qualquer outro templo terá ficado em plano secundário. Também mais
relevantes do ponto de vista histórico e turístico em Paris estão Sainte-Chapelle
e a Basílica de Sacre-Coeur.
Ainda assim, Saint-Sulpice tem lá seu charme. E suas histórias.
É conhecida por sediar o famoso Meridiano de Paris. Trata-se de uma linha
imaginária que corta todo o globo, como todos os meridianos. Na igreja, a linha
se materializa, sendo demarcada no solo por um fio dourado. É parte de um
sistema astronômico, como explica o Wikipedia: “Languet de Gercy (o
sacerdote de São Sulpício) precisava de um sistema para controlar os equinócios
e poder predizer qual era a data da Páscoa,
e encarregou dessa tarefa o astrônomo e relojoeiro inglês Henry Sully. Este, por sua
vez, construiu uma linha de latão no chão, paralela aos meridianos da
Terra, que se estende até um obelisco de mármore na
parede (com data de 1743) e se ergue onze metros acima do chão junto à parede. Ao
mesmo tempo, foi instalado junto a uma janela um sistema de lentes; assim, ao
meio-dia do solstício de inverno (...),
a luz do sol passa
pela janela incidindo sobre a linha de latão até o obelisco, e nos equinócios (...),
ao meio-dia, a luz bate em um prato oval de cobre diante do altar”.
Um sistema puramente científico, mas que ganhou uma versão
mística em razão do livro e do tal “Código Da Vinci”.
Não é só. A existência das letras “P” e “S” na igreja também
foi mencionada na obra. Seriam as iniciais do “Priorado de Sião”, uma suposta
sociedade secreta encarregada de proteger e guardar ao longo dos séculos o
famoso Graal, o cálice usado por Jesus, mas que na história de Brown é na
verdade Maria Madalena (repito: não darei detalhes do enredo).
A obra fez tanto sucesso (vendeu mais de 80 milhões de
cópias no mundo e ganhou uma versão cinematográfica, com Tom Hanks no papel
principal) que a até então secundária Saint-Sulpice virou protagonista no
roteiro de milhares (milhões talvez) de pessoas. Eu, por exemplo, fui até lá
atraído pelas histórias do livro. Era o último dos sete dias de visita a Paris.
O último de um tour de 25 dias pela Europa. Estava com um amigo e, àquela
altura, cansados de museus e etc. já não sabíamos mais o que fazer na capital
francesa – por mais que isto, admito, pareça uma ofensa. Até que lembrei da
igreja citada por Dan Brown.
Curioso (jornalista), apaixonado por história (Paris é um
prato cheio) e intrigado por mistérios (o “Código da Vinci” é de enlouquecer
qualquer cristão), lá fui eu. Lá fomos nós. Era uma tarde meio cinzenta. A
igreja, embora bonita, de estilo românico, naquele momento me pareceu normal
(já tinham sido tantas em Paris naquela semana...). Sequer foto eu fiz para
registrá-la – a praça defronte me chamou mais a atenção por causa de uma
feirinha de produtos nórdicos.
Meu interesse era mesmo o interior do templo e seus supostos
mistérios. Logo explicados. Lá dentro havia um número considerável de pessoas,
a maioria próximas ao tal obelisco, tirando fotos. Detalhe: já tinham se
passado quatro anos desde o lançamento do livro. O número de visitantes cresceu
tanto que os responsáveis pela igreja viram-se obrigados a colocar uma nota de
esclarecimento negando as versões apresentadas por Brown:
“O meridiano é parte de um sistema científico construído
aqui no século 18. Foi feito em total acordo com as autoridades da Igreja (...).
Os astrônomos o usavam para definir vários parâmetros da órbita terrestre.
Sistemas similares foram feitos em outros grandes templos, como a catedral de
Bolonha, onde o papa Gregório 13 teve estudos preparatórios feitos para
definição do atual calendário ‘gregoriano’.
Ao contrário das alegações de um recente best-seller, isto não
é vestígio de um templo pagão. Nenhum templo deste tipo existiu aqui. Ele nunca
foi chamado de ‘Linha Rosa’. Ele não coincide com o meridiano traçado no
Observatório de Paris (...). Nenhuma noção mística pode ser depreendida deste
instrumento de astronomia, exceto para reconhecer que Deus, o Criador, é o mestre
do tempo.
Por favor, saiba também que as letras ‘P’ e ‘S’ nas pequenas
janelas em ambos os transeptos se referem a ‘Pedro’ e ‘Sulpício’, os santos patronos
da igreja, não a um imaginário ‘Priorado de Sião’.”
(Em tempo: transepto é a parte que corta na perpendicular um
eixo principal, ou seja, as alas laterais da nave principal da igreja.)
PS: aqui, nem “Pedro”, nem “Sulpício”, nem “Priorado de Sião”; “post-scriptum” mesmo. Para os místicos, ler a explicação soa decepcionante. Para os incrédulos, indiferente. Para um jornalista, cuja missão é desconfiar de tudo, simplesmente empolgante.