Finalmente a neve (e os "snow flakes!")

Precipitação de cristais de gelo, frequentemente agrupados em flocos e formados pelo congelamento do vapor de água que se encontra suspenso na atmosfera. É assim que o famoso dicionário "Houaiss" define um dos fenômenos da natureza mais comuns nos países próximos dos polos. A neve. O floco ou conjunto de flocos desses cristais, na definição por metonímia, também no "Houaiss".
E foi assim, como floco, que a encontrei pela primeira vez. Era início da madrugada na fria e chuvosa Montreal, no Canadá. Tinha ido a uma microcervejaria – a 3 Brasseurs – com um amigo com as únicas intenções de me divertir um pouco, comer e beber algo e escapar do clima pouco amigável na rua. Clima, aliás, que prejudicara os passeios do dia e nos fizera apressar o passo nos quatro quarteirões que separavam o hotel do bar.
Nunca, em meus sonhos mais remotos, imaginei que começaria ali uma aventura inesquecível. Justamente por causa do “clima pouco amigável”, o que era uma chuva fina e fria foi virando durante a noite, sem que percebêssemos, pequenos flocos. De neve! Ou, para usar a expressão da noite, trazida à lembrança pelo amigo que me acompanhava, do céu escuro caíam “snow flakes”. (Eu só fui entender a expressão quando, já no conforto do hotel, lembrei-me do comercial de sucrilhos da infância que anunciava os tradicionais flocos de milho como “corn flakes”.)
“Snow flakes!”, “Snow flakes!”, “Snow flakes!” – gritava alucinado meu amigo. A temperatura era baixa, provavelmente menor que zero, o chão seguia molhado, um cenário típico para qualquer coisa que não fosse sair à rua vibrar, festejar, pular de alegria como fazíamos naquele momento. Qualquer coisa era motivo de comemoração – um carro que passava, uma placa de trânsito encontrada no chão, a vibração era total. “Snow flakes!”, “Snow flakes!”, “Snow flakes!” – palavras entremeadas a sorrisos.
Nessa viagem, nunca fui tão feliz como naquela noite fria e chuvosa de Montreal.

  
A principal surpresa, porém, estava reservada para o dia seguinte. O roteiro previa uma viagem de trem até Ottawa, a capital canadense. Localidade pequena, quase inútil, entremeada entre Montreal e Toronto, duas das maiores cidades do país.
O dia nem sequer nascera e já estávamos a caminho da estação. Chovia de modo intenso em Montreal. Já no trem, o dia foi clareando, cinzento. Clima propício para um cochilo. Numa parada, acordei. Olhei pela janela ainda sem entender bem o que via. Segundos se passaram até que pudesse processar a informação. Foi lento – lembro bem. Era como se não enxergasse o que via pela janela. Quando me dei conta, não eram “snow flakes”. Havia, conforme a derivação por metonímia citada no "Houaiss", uma “camada desses flocos depositada sobre a terra”. Uma “cor branca muito alva”, na derivação por extensão de sentido. Estava nevando!
Uma neve inesperada, surpreendente, emocionante. Pela primeira vez eu via a neve. Recordo-me com exatidão da minha reação. Exultante, virei para o lado e acordei meu amigo: “Cara, olha isto! É neve! Neve...!” Foi só o que pude dizer. Meu amigo voltou a dormir. Eu não desgrudei o olhar da janela do trem, pontilhada pelos pingos da chuva. Vi passar carros e casas cobertos de branco; vi passar campos e estradas cobertos de branco; vi passar árvores e arbustos cobertos de branco. Tudo de repente ficou coberto de branco (e nenhum sinal de vida se via lá fora).



  
Para um morador dos trópicos, era inevitável pensar como pode haver vida naquele lugar nos dias mais rigorosos de inverno. Vida cotidiana, ou seja, fazer compras, ir à escola, à igreja, andar pela rua... Fazia um “frio excessivo” (eis mais uma definição do "Houaiss" na derivação por extensão de sentido). E sequer estávamos nos dias mais rigorosos do inverno – a estação até já tinha se despedido há um mês, dando lugar à primavera.
Não foi à toa que o motorista do ônibus que nos levou da estação de trem ao centro de Ottawa se mostrou tão surpreso quanto eu com a neve. “Nunca neva nesta época do ano, não sei o que está acontecendo...”, disse, simpático. A surpresa dele com a neve só não deve ter sido maior da que tivera com a nossa presença ali naquele dia. Quando soube que éramos brasileiros, perguntou num tom espantado: “E o que vocês estão fazendo a-q-u-i?!”.
A pergunta me deixara com uma dúvida: será que tínhamos entrado numa fria (ou, turisticamente falando, será que a cidade não valia a pena?). A resposta, porém, estava ali do lado de fora: a neve, a inesperada e surpreendente neve fazia valer cada momento daquele dia frio. É bem verdade que com o derretimento do gelo na calçada e a chuva fina que insistia em cair, ficou quase inviável passear por Ottawa. Conhecer os pontos turísticos tornou-se um desafio.
Hoje, relembrando o comentário do motorista do ônibus sobre a neve que nunca caía naquele período, penso se não seria aquilo tudo uma dádiva divina. Um presente dos céus a dois turistas quase acidentais na capital canadense. Um suspiro do Criador a dois filhos que um dia sonharam ver e sentir a “precipitação de cristais de gelo” chamada neve.
A camada de gelo depositada sobre a terra, de uma cor branca muito alva, dava o tom da paisagem por todo canto. Carros passavam com neve sobre o capô; as máquinas de jornal e caixas de correio cobriram-se de neve; a placa com informações turísticas não podia ser lida por causa da neve; nos canteiros de tulipas, a terra deu lugar à neve; na calçada, poças de água ganharam uma fina camada de gelo. Eu me sentia numa enorme geladeira. E estava feliz. Profundamente feliz.











Templos olímpicos

Sempre que uma cidade é escolhida para sede dos Jogos Olímpicos de Verão, como o Rio de Janeiro, um dos temas mais abordados é o tal legado aos cidadãos. Um exemplo comumente citado é Barcelona, que revitalizou uma área costeira para sediar as Olimpíadas de 1992. Dos jogos da era moderna, desde Atenas-1896, apenas mais recentemente - nos últimos 40 anos - é que se fala em parques olímpicos. Antes, os jogos costumavam ocupar as estruturas já existentes nas cidades, de modo que é difícil ver em Paris ou Amsterdã, por exemplo, resquícios das olimpíadas que sediaram na primeira metade do século 20.
Nas minhas viagens mundo afora, tive a oportunidade de conhecer três dos parques mais recentes. Munique 1972, Montreal 1976 e Atlanta 1996. Sem dúvida, o de Atlanta é o mais integrado à cidade; o de Munique o mais verde; e o de Montreal o menos preservado (embora possua boas estruturas esportivas, como um ginásio e um estádio, e uma extensa área verde). Em Munique e Montreal, os parques ficam um pouco mais afastados da área central; já em Atlanta, é o coração da cidade, ao redor do qual se situam as principais atrações turísticas.
Quando fui ao parque olímpico de Munique, era o final de uma tarde cinzenta. Havia várias pessoas no local, mas nada comparado à festa que vi em Atlanta no último dia 4 de abril, uma quarta-feira. O local foi ocupado por milhares de pessoas, centenas de famílias que faziam piquenique. Crianças e jovens se refrescavam na fonte sobre os anéis olímpicos e muitos curtiam shows que aconteciam no local. Confesso que não sei se a festa era rotineira ou se estava assistindo a algum evento especial - nas vezes anteriores em que cruzei o parque, a frequência de pessoas era bem baixa.
O parque olímpico de Atlanta é bonito e preservado (há uma distância de pelo menos 20 anos entre ele e os demais que conheci). Mistura natureza e arquitetura com harmonia e perfeição. Possui estruturas de lazer e monumentos para louvar o chamado espírito olímpico, os países que participaram dos jogos e os atletas que conquistaram medalhas. Ao lado ficam o ginásio (Philips Arena) e o estádio (Georgia Dome) usados nas competições – hoje sedes do time de basquete Atlanta Hawks e do time de futebol americano Atlanta Falcons (e não só deles, registre-se). Há estações de metrô que saem praticamente dentro das duas praças esportivas.








Em Munique, o grande destaque é, sem dúvida, o verde. Moradores e turistas vão ao local para descansar em meio à natureza – muito bem cuidada, aliás. Há, naturalmente, estruturas esportivas, como as piscinas olímpicas que hoje são usadas pela população, mas é mesmo o contato com o meio ambiente que chama a atenção. No lago, barquinhos, patos, cisnes e gansos dividem espaço com a comunidade.
Perto dos apartamentos que formavam a vila olímpica, um pequeno monumento em concreto lembra um fato que entrou para a história do esporte mundial: o ataque de terroristas palestinos à delegação de Israel. O episódio - retratado no cinema (“Munique”, lançado em 1995, com direção de Steven Spielberg) – resultou na morte de 17 pessoas, sendo 11 membros da delegação israelense (seis técnicos e cinco atletas), um policial alemão e cinco membros do grupo Setembro Negro, que assumiu a autoria do atentado.
Confesso que emoções estranhas vieram à tona ao me deparar com esse pedaço lamentável da história olímpica, que completa 40 anos em 2012 (aliás, Israel solicitou recentemente ao Comitê Olímpico Internacional que uma homenagem aos mortos naquele episódio seja feita durante as Olimpíadas de Londres, que começam em julho). Uma sensação de pertencer à história e, ao mesmo tempo, de repulsa e tristeza tomou-me o espírito.



Visitei o parque de Montreal numa manhã nublada e fria de domingo. O local estava vazio, com exceção de alguns funcionários que trabalhavam na desmontagem da estrutura de um evento ocorrido um dia antes e de uma exposição de flores que acontecia por ali. A área propriamente está longe de ser agradável como as de Atlanta e Munique. Tem-se uma estrutura basicamente em concreto, com uma redoma – o Biodome, onde funciona uma espécie de museu da ecologia e um “insectarium” - e as estruturas esportivas próximas (o estádio olímpico, piscinas cobertas e um ginásio).
No local, ainda tremulam as bandeiras dos países que participaram dos jogos.
Ao lado existe uma extensa área verde (bem maior que as de Atlanta e Munique, mas não tão integrada ao parque como nas demais), onde funciona o jardim botânico de Montreal, o segundo maior do mundo em extensão.
Confesso que o clima frio e chuvoso daquele domingo desestimulou a visita às instalações do parque e também ao jardim próximo, que devem ser interessantes. Seja como for, espero que o parque seja mais utilizado pela população do que na ocasião em que o conheci. Eu, pelo jeito, terei que voltar a Montreal...



  

  

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