Um dia diferente

Comecei a suspeitar de que havia algo estranho naquele dia ainda no trem. A cada parada no trajeto, novas pessoas “diferentes” surgiam. Vestiam roupas extravagantes, usavam cabelos coloridos, empunhavam armas brancas e exibiam uma animação fora do comum. Cheguei a suspeitar de que podiam ser jovens estudantes indo para algum evento da escola. Engano. Meio engano. De fato, muitos eram jovens – e com certeza estudantes. Preparados para um evento, sem dúvida. Nada, porém, que tivesse relação com a escola.
Tão logo desembarquei, um tanto assustado, notei que os personagens se multiplicavam. De repente, eu me dei conta de que não era um grupo; eram grupos. De que não eram alguns; eram dezenas, centenas, milhares. Chegavam de todos os lados, aos montes, a cada nova parada de um trem na estação. Desciam animados, muitos já incorporando comportamentos dos personagens a quem davam vida.
Captando o clima, um pai ordenou aos filhos pequenos: “Follow the people with green hair!”. Àquela altura, minha incompreensão havia aumentado. O que era uma pequena dúvida dentro do trem, durante a viagem, deu lugar a uma grande incerteza. O que, afinal, estava ocorrendo ali naquele dia? A resposta surgiu num folheto distribuído no centro de informações turísticas, depois repetida em cartazes e bandeirolas espalhadas pelas principais ruas daquela cidade milenar. Eu era parte do Lucca Comics Games 2010, uma das maiores feiras de quadrinhos, gibis e afins da Europa.

Obviamente, um turista como eu - que pretendia percorrer com calma as ruas daquele lugar cujas origens remontam ao Império Romano, séculos antes de Cristo - não contava com uma invasão de super-heróis. Obviamente, não esperava cruzar com Branca de Neve, Homem de Ferro e tantos outros em cada esquina. Obviamente, não imaginava ter que disputar espaço nas ruas com tantos personagens e casais exóticos. Obviamente, aquilo tudo não estava nos planos e atrapalhou a visita a Lucca. Obviamente, não esperava me divertir tanto com pessoas e situações tão inusitadas como as que encontrei naquele lugar, naquele dia.
O que eu esperava ser um dia tranquilo pelas históricas ruas de Lucca, cercadas pela grande muralha medieval, transformou-se num desfile de moda. Uma moda estranha, diferente, colorida (às vezes monocromática). Os modelos-heróis desfilavam orgulhosos seus uniformes garbosos, trajes heroicos. Faziam questão de posar para fotos com quem quer que fosse. Exibiam-se para grupos que se formavam e se desmanchavam com a mesma rapidez de um velocista.




Algumas cenas eram inimagináveis. Experimente tomar um café ao lado de um grupo de samurais. Ou se deparar com o Homem de Ferro lutando contra um inimigo invisível em frente ao Teatro Comunale del Giglio. Ou ainda encontrar um trio de “anjos” carregando uma mala pelas ruas. Ou ver o lendário Mario Bros. - dos jogos da minha infância - caminhando ali, logo à frente, perto da Basílica de San Frediano.
De fato, a séria Lucca ficou cômica naquele domingo de sol reluzente e um belo céu azul como pano de fundo. Seus monumentos, carrancudos, ganharam um ar descontraído. Era quase um choque de civilização. Um passado milenar, com marcas arquitetônicas medievais, obscuro às vezes, pagão em alguns momentos (basta reparar na Igreja de San Michele in Foro), dando lugar à ousadia, à criatividade, à rebeldia juvenil do século 21.
E não só juvenil. Impossível ignorar os “marmanjos” vestindo suas fantasias, com gestos típicos dos personagens que incorporavam. “Jiraia!”, alguém gritou. Gestos e palavras de ordem saíam quase que mediunicamente. E eram apenas isso, gestos e palavras. No Lucca Comics Games, as armas e as lutas eram, paradoxalmente, sinais de alegria e de paz. E foi assim, rindo e de alma renovada, que eu deixei a cidade.
Certamente, não era aquela Lucca que eu esperava encontrar. Ainda assim, certamente, aquele domingo incomum marcou a minha memória.
Viva os super-heróis!






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