Pessoas que atravessam pontes
escuras,
passando por santos
com luzinhas tênues.
Nuvens que singram por céus
cinzentos
passando por igrejas
com torres crepusculares.
Alguém, encostado na amurada
de blocos de pedra
olhando para a água noturna,
apoia as mãos sobre pedras
antigas.
(Franz Kafka)
Praga é uma cidade de pontas. E pontes. Não que estas sejam
muitas – não são. Apenas o que comumente se vê em outras cidades de porte
semelhante cortadas por um rio. Pontas sim, estas pipocam por todos os cantos.
Vistas de dia, colorem a cidade de vermelho e preto. Vermelho dos telhados,
preto das coberturas dominadas pelo tempo. Vistas sob o sol, formam contornos
que dividem a paisagem em céu e terra, dando a exata dimensão do humano e do
divino. Vistas à noite, reluzem nas águas calmas do Moldova, iluminam a
escuridão, brilham tal qual joias de uma coroa.
Quando se mira ao longe – e ao largo – a paisagem de Praga,
é isto o que se vê: pontas. Umas mais agulhadas que outras, algumas carregando
cruzes sinais da fé, outras um tanto disformes, mas harmoniosas quando
misturadas às demais, formando um belo conjunto. Pontas, pontas, pontas... Elas
dominam porque sabem possuir poder. O poder dos céus quando partes de um
templo, o poder dos homens quando partes de um castelo ou edificação do gênero.
Numa cidade com uma parte íngreme, as pontas se impõem. Numa
cidade com uma parte plana, as pontas se destacam. Em um caso e outro, elas
estão lá, imponentes. É impossível não notá-las (ou não ter-se-á ido a Praga).
Porque se unitariamente elas nada dizem ou nada significam naquele lugar,
juntas são indispensáveis. Se unitariamente podem até passar despercebidas,
juntas atraem a visão. É como uma galáxia repleta de estrelas. São
indissociáveis.
E em meio a tantas pontas, uma ponte se destaca. Uma entre
todas, ela. Pela beleza, pela história, pela arquitetura, pela arte. Com seus
16 arcos de pedra, a ponte Carlos liga a cidade velha à cidade baixa há
séculos. Repleta de imagens (são 30), vê passar dia e noite moradores e
invasores (conquistadores ontem, turistas hoje) num vai-vem frenético, cada
qual com um objetivo a alcançar, seja contemplar a paisagem ao redor, seja
mudar de vida.
Passam as pessoas assistidas por santos e santas, “testemunhas, transformadas em pedra, de uma
religiosidade católica ainda viva em Praga”, nas palavras de Harald Salfellner
em “Franz Kafka & Praga” (p. 101). As imagens estão ali desde 1657, quando
a ponte recebeu o primeiro crucifixo de ferro fundido. São tantos santos e
santas que a própria razão desconhece. Miram para o alto, indicando o caminho
da alma; miram para adiante, indicando o caminho do corpo. Choram a dor da
paixão, a paixão do amor maior, o da doação em sacrifício.
Uma cidade de pontas, com sua
ponte santa (ou cheia de santos). Naturalmente, Praga não se resume a isto –
pontas e pontes; mas é também isto, gloriosamente isto. Dificilmente haverá
outro lugar em que as ponta dos telhados se destacarão desse modo. Certamente há
muitos outros onde as pontes têm grande valor. Juntas, porém, pontes e pontas,
só em Praga. Apenas e tão somente a capital da República Tcheca. Antigas,
crepusculares, tênues as pontas e as pontes. Caminhos para o outro lado, de uma
cidade ou da vida.
Nada mais seria preciso em
Praga para fazê-la valer a pena, nada mais seria necessário para torná-la única
e, por isto, especial. Mas Praga é Praga e tem muito mais. Pontas, pontes e
muito mais.
* As fotos são minhas, de Lúcia
Parronchi e Paulo Venâncio