No meio da sopa tinha uma pedra

“Vais experimentarrr a famôsa sopa de pedra!” (sic de sotaque)
O cardápio prometia. Eu temia – não sou afeito à culinária (confesso, eis o maior dos meus defeitos como viajante, abrir mão de um aspecto crucial da cultura de qualquer lugar). Nosso anfitrião, que servia de guia improvisado, levou-nos a um restaurante não sei bem onde. Em Portugal, naturalmente. Estávamos em Portugal, a sopa de pedra é uma tradição portuguesa, ele dizia.
Pelo que soube na hora, a história era mais ou menos a seguinte: um pobre teria batido à porta de uma família pedindo comida. Diante da negativa, ele falou sobre uma tal sopa de pedra. Tratava-se de uma sopa com uma pedra; quem a encontrasse teria sorte na vida. Os donos da casa se entusiasmaram e permitiram que o visitante preparasse a tal sopa. Faminto, o homem aproveitou a história da pedra da sorte e foi pedindo um ingrediente atrás do outro. No fim, fez uma sopa reforçada, jogou a pedra dentro e todos saíram felizes. Rapidamente, a história se espalhou pela região e a sopa de pedra ficou famosa.
Na Internet, a lenda – obviamente a história não é verdadeira – tem pelo menos mais uma versão, mas o cerne não muda: uma pedra como artifício para preparar uma bela sopa. Ok, a tradição é interessante, tem um forte apelo cultural e até antropológico, mas como seria afinal a tal sopa? Teria ingredientes “diferentes”, como miúdos de porco ou de boi, buchos ou algo do gênero? Sim, eu tinha receio do que viria...
Prato servido, colher à mão. O aroma era bom. A aparência, agradável. Supostamente nada de estranho no caldo. Era isto, um caldo. Reforçado. Cheio de produtos mesmo. Saboroso. Bom, muito bom. E não é que a famosa sopa de pedra realmente valia a pena! Temores desfeitos, restava o prazer de experimentar a típica culinária portuguesa em Portugal – experiências são a essência de qualquer viagem (e eu já tinha provado um delicioso bacalhau com batatas ao murro).
Restava, pois, a lenda. A parte mais curiosa – e interessante – da receita. A tradição. A pedra. Haveria mesmo uma pedra? Nosso anfitrião garantia que sim, rindo, misturando uma fala assertiva com outra propositadamente suspeita. A pedra era apenas a parte lendária da história, tratava-se de uma sopa comum. Boa, bem boa, mas como outras boas que já provei.
E saboreávamos com prazer a receita, entremeando as colheradas do caldo a um bate-papo descontraído, taças de vinho, mais colheradas, uma mordidinha em algum legume, risadas, pergunta, respostas, outra colherada, e mais outra, e mais uma, e um gole de vinho, guardanapo, colherada, colherada, colherada, colherada... E o prato ia secando e todos tentávamos disfarçar a curiosidade para descobrir se de fato haveria uma pedra e a ansiedade para encontrá-la.
E novas colheradas ocorreram até que, no fundo do prato fundo, surgiu uma... pedra! Sim, havia uma pedra. No meu prato! “Olha, achei a pedra!” A sopa de pedra, de fato, tinha uma pedra. Uma espécie de pedregulho. Nem pequena que pudesse ser ingerida acidentalmente nem grande que pudesse ser facilmente descoberta ou inconveniente para a degustação. Na medida, uma pedra na medida dentro de um prato com sopa.
Estava desfeita em definitivo a curiosidade – a pedra existia. Quantas pedras haverá na cozinha? Eles lavam a pedra quando o prato volta? O cliente pode levar a pedra? A confirmação daquele estranho “ingrediente” (enfim, um ingrediente “diferente” na receita) suscitou uma nova onda de curiosidades. Entremeadas por novas colheradas, agora mais escassas. A sopa estava acabando.
Eu, inocentemente, estava feliz. Momentaneamente feliz. Com cinco pratos à mesa, a pedra foi aparecer justamente no meu. Estava materializada a tradição da lenda da sopa de pedra. Só faltava um detalhe: a promessa de sorte a quem encontrasse a dita cuja. Se a pedra existia, sorte então não me faltaria? Eu teria direito a um desejo, um pedido? Nosso anfitrião garantiu: “vais ter sorte na vida!” Eu preferi acreditar.
Não me lembro se desejei algo. Tampouco me recordo o que fiz com a pedra – vagamente tenho na mente uma imagem distante de um prato fundo de cerâmica branca voltando para a cozinha com alguns respingos de caldo e uma pedra dentro. A pedra deve ter voltado de onde veio – provavelmente para uma nova sopa. Que provavelmente iria despertar a curiosidade de um novo cliente (quem sabe um turista como eu?). Que provavelmente ficaria ansioso para encontrar a pedra. E provavelmente ficaria em dúvida se a parte da lenda que versa sobre sorte na vida seria tão verdadeira quanto a pedra.
E já que a pedra protagonizou esta história, e também a lenda e também a sopa, vejo-me forçado a lembrar de Drummond. Porque, tal como ele, “Nunca me esquecerei desse acontecimento / Na vida de minhas retinas tão fatigadas”. “Nunca me esquecerei que no meio do caminho / Tinha uma pedra / Tinha uma pedra no meio do caminho / No meio do caminho tinha uma pedra”.
E como a pedra é, na tradição, desígnio de sorte na vida, e como a vida é feito um caminho a ser percorrido, deve mesmo ser bom ter uma pedra no meio do caminho. Ou da sopa...

Em tempo: não costumo dar dicas neste blog do tipo "não deixe de ir" ou "não deixe de experimentar", mas vou abrir uma exceção: estando em Portugal, experimente a famosa sopa de pedra. Você vai gostar - e se divertir!

A doce Frankfurt

Descobri que o coração não aceita acasos. Ou melhor, nada fica – ou entra – no coração por acaso. Pessoas ou lugares, animais ou objetos. Assim descobri Frankfurt a.M. – ou am Main (há outra Frankfurt, “am Oder”; Main e Oder são dois rios e as respectivas cidades ficam às suas margens). A principal delas, a que as pessoas via de regra conhecem ou sobre a qual já ouviram falar, é a Frankfurt à beira do rio Main. É ela que está, não ao acaso, no coração da Alemanha.
A cidade não é capital, mas abriga o centro financeiro do país e serve de porta de entrada nacional para grande parte das pessoas que chegam do exterior. Apesar disso, costuma ser vista com certo desdém. Eu a via assim, confesso. Pudera: Frankfurt (chamemo-na simplesmente assim) não possui o charme da Bavária (onde fica Munique) nem o peso da história recente de Berlim. Pelo menos não tem a propaganda de ambas.
Como, pois, não se encantar logo nos primeiros passos pela Römerberg, a principal praça da cidade antiga (Altstadt)? Além da Römer Haus que dá nome ao lugar e foi sede da prefeitura por seis séculos, estão lá a Alte Nikolaikirche e as típicas casinhas germânicas, como se tivessem saído de algum conto de fadas cujos personagens são biscoitos de baunilha e balas de caramelo. Casinhas parecidas com confeitos de bolo, feitas de marzipã e cobertas com chantilly e chocolate. Hoje, abrigam lojinhas, bares e restaurantes.
E a inclinação da praça faz do local ainda mais mágico. Você se sente no meio de um enorme palco, com aquele cenário encantador ao redor. Vê dali a torre vermelho-alaranjada da Kaiserdom, a catedral, logo atrás, dominante na Domplatz, completando com a Paulskirche (ali ao lado na Paulsplatz) o trio de igrejas separadas não mais do que 200 metros uma da outra.
Cada detalhe ajuda a completar a paisagem: a janela decorada com figuras, cenas e brasões de estilo germânico, delicadamente iluminados por pequenas lâmpadas amarelas, deixando à mostra o interior com lustres igualmente decorados; os letreiros com fontes em estilo gótico pendurados em armações de ferro e madeira escuros, com detalhes em dourado, em formatos suntuosos que remetem a séculos... Nada escapa aos olhos tamanha a profusão de encantos a observar.



 








Sem contar que a alguns passos – outros 200 metros pela Fahrtor - está o Main, tão importante para a cidade que lhe serve de complemento ao nome. Rio de águas amarronzadas, que passam sob pontes como a Iron Bridge e sua romântica estrutura de ferro esverdeada, logo ali em frente, após a Mainkai, de onde se vê na margem oposta, imponente, a Dreikönigskirche – que, aliás, segue o estilo das demais igrejas da área, ora com paredes cor de creme misturadas a tijolos alaranjados, ora apenas com tijolos avermelhados, sempre com uma torre única. São todas como irmãs, unidas, pontuando a paisagem.
E lá se vai o Main rasgando a cidade, contornando prédios que dão a Frankfurt um ar de modernidade singular e incomum em cidades alemãs. Um “skyline” americanizado, como que para mostrar ao mundo que ali está uma das tantas fênix alemãs renascidas de tantas e cruéis batalhas. Não uma Fénix qualquer; a imponente e poderosa Frankfurt – um retrato da Alemanha do século 21. Um país que sobreviveu ao terror do nazismo e dos ataques aliados, viu suas cidades serem destruídas, reconstruiu-se e reergueu-se talvez mais forte que antes, para liderar a Europa unindo tradição e modernidade, escancarando seu passado para ajudar a contar uma história que, quiçá, não se repetirá.
É para este país que Frankfurt pulsa, emana sua vitalidade financeira e sua energia, tal como faz o coração. Não é à toa, pois, que a cidade está bem ali no centro, um pouco à esquerda do peito alemão. Tal como o coração nos seres humanos, o coração que a cidade – e o país, por que não? – cada vez mais tenta conquistar. A olhar para o charme e o encanto de Frankfurt, a modernidade e a civilidade alemãs, não será uma tarefa tão difícil...






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