Lições de Amsterdã

Quem vai a Amsterdã, a capital da Holanda, tem - ainda que não revele - duas curiosidades. São quase dois mitos locais: o consumo legalizado de drogas e as prostitutas nas vitrinas. Eu, obviamente, não releguei minha condição humana e fui satisfazer a curiosidade. Com um misto de ansiedade e medo, confesso. Afinal, as histórias que sempre ouvi davam conta de gente jogada pelas ruas de tanta droga e uma área de prostituição é, digamos, uma área de prostituição em qualquer cidade. Ou seja, uma zona.
Amsterdã, porém, ensina lições. Uma cidade que mistura antigo e novo, tradição e ousadia, que sobrevive às águas, não se renderia afinal aos preconceitos. E assim foi. Durante todo o tempo em que fiquei na cidade, não vi sequer um usuário de drogas em atividade. Não nas ruas. Muito menos gente atirada ao chão. Ainda que tenha estado em frente ao museu da maconha (e, sim, eu o procurei, mas não entrei - pareceu-me inútil), vi muito menos droga do que se encontra em qualquer cidade brasileira. Vi droga nenhuma.
Contudo, Amsterdã tem algo a mostrar. Sim, o uso de drogas é legalizado, o que não significa que se pode sair fumando, injetando ou cheirando livremente pelas ruas. Não pode. Para isso, existem locais específicos, os "coffee shops". Existem vários, facilmente localizados. Neles, o uso de cannabis é liberado. As opções para consumo estão civilizadamente no cardápio.
Não sei dizer como - e se - funciona o tráfico de drogas na Holanda. Produtos mais fortes, como crack e heroína, não estão no menu. Ainda assim, é curioso e interessante se deparar com uma das experiências pioneiras de descriminalização do uso de drogas - tema debatido ainda timidamente no Brasil, um país de forte tradição católica e pentecostal, ao contrário da Holanda, protestante.


Droga e sexo, duas molas propulsoras da história. Dois mercados dos mais rentáveis e movimentados no mundo. E nisso Amsterdã é uma imensa escola. Ir ao bairro da luz vermelha, o Red Light District, é se deparar com a mais cruel imagem de um ser humano como objeto. Objeto de negócio, ali exposto numa vitrina, objeto de desejo, alvo dos olhares e da tentação alheios.
Não sabia exatamente o que esperar. Quase não notei quando lá cheguei, tamanha a quantidade de gente - homens, mulheres, crianças com seus pais, senhores e senhoras - caminhando tranquilamente pelas duas calçadas separadas por um pequeno canal ao longo das quais se estendem uma série de pequenas vitrinas onde se exibem mulheres muito menos belas do que se pode supor. Sob este aspecto, o Red Light é uma decepção até, eu diria. 
Uma previsível reação de espanto deu lugar à risada. Sim, o bairro da luz vermelha revela-se engraçado. E curioso. Lembro bem de ter pensado: "É a cena mais exótica que já vi!". Naturalmente, ver a oferta de corpos femininos em vitrinas, como se fossem laranjas ou bolsas ou quadros, é diferente e insólito, mas não me pareceu nem um pouco agressivo. As mulheres, com seus trajes sumários, comportam-se como mercadorias à espera dos clientes. Assim, pouco se oferecem - e isto é mesmo desnecessário na situação em que se encontram. 
O que quero dizer é que as prostitutas locais (sim, isto é o que elas são) não ficam manifestando suas qualidades com as mãos, boca e outros que tais. Não anunciam vantagens, posições e atividades. Simplesmente esperam, às vezes até parecendo despreocupadas, lixando unhas.
De todas que vi, uma ou duas eram, digamos, mais jovens e esculturais. A maioria eram mulheres, simplesmente mulheres. Basta. Uma delas podia ser considerada inclusive uma jovem senhora. Produtos para todos os tipos e gostos.
Da calçada, turistas observam. Clientes em potencial se aproximam e tentam uma conversa. Sob os olhares de todos. Não vi ninguém entrar (devia ser um dia de movimento fraco). Elas cobravam de 50 a 100 euros, preços que me pareceram adequados. Se o programa é acertado, basta entrar e fechar a cortina da vitrina. Tudo se faz ali mesmo, quase às claras.
Embora mantenham-se aparentemente "comportadas" e "discretas" (sei que isto soa estranho, mas estamos falando da zona...), aquelas mulheres fazem parte de um negócio. Estão ali, antes e acima de tudo, para vender. O próprio corpo. Precisam, portanto, de clientes. Uma delas, do outro lado da calçada, fez um sinal com o dedo indicador em minha direção. Dois movimentos pausados, sensuais, um chamamento - ao qual ignorei. 
Já outra, que arrisquei fotografar, preferiu outro dedo. O do meio em riste, com os demais recuados, para me censurar. Ainda assim, bati a foto - que saiu sem qualidade. Não fiz nova tentativa.
Passados a curiosidade e o medo, pus-me a refletir. No fim, achei tudo aquilo mais honesto, limpo e transparente do que as zonas mundo afora. As mulheres sabem o que querem, os clientes sabem o que querem, os turistas sabem onde estão, as autoridades sabem o que lá existe, todos sabem tudo. Ou quase tudo (porque entre três paredes e uma cortina, nada é proibido. Ou é?).
Definitivamente, Amsterdã ensina lições. 




Postagem em destaque

A Veneza verde do Norte

A tecnologia que empresas suecas levam mundo afora hoje em dia não é um acaso. O país tem vocação para invenções e descobertas. O passado v...

mais visitadas