Um encontro com a história

Às vezes, a história cruza nosso caminho das formas mais surpreendentes. Quando estive em Munique com dois amigos pesquisadores, em outubro de 2005, tinha na agenda um almoço com uma psiquiatra cuja bisavó vivera na Fazenda Ibicaba no século 19 – na época, a propriedade ficava no território de Limeira (hoje localiza-se em Cordeirópolis). Esta era a nossa “pauta” naquele encontro. Contudo, a nossa anfitriã - não bastasse a saga da bisavó que emigrara para o Brasil ainda bebê, perdera a mãe e fora adotada por um dos filhos do senador Nicolau Pereira de Campos Vergueiro, dono de Ibicaba - guardava outra história para contar. Uma história que, passados mais de 60 anos, continua vida em toda a Europa – e, de resto, em todo o mundo.O almoço corria tranquilamente. Nós, interessados na história da família; ela, aproveitando a visita de estrangeiros curiosos para refrescar as lembranças. E em meio ao peixe ensopado (era este o cardápio) foi surgindo um relato com contornos dramáticos de uma família que se viu dividida em razão de um homem cuja loucura o mundo conheceu: Adolf Hitler.O avô da nossa anfitriã era nazista. Aderira ao partido (e às ideias) do Führer desde o princípio. Guardava na memória o tempo em que fora prisioneiro na França durante a Primeira Guerra Mundial. Vira no nazismo a oportunidade de resgatar sua autoestima, a autoestima de seu país, de mostrar a “superioridade” da raça ariana. A avó, porém, resistia. Era contrária a Hitler. O conflito familiar se estabeleceu. O homem era rude, bravo. À mulher, restava a resiliência. E assim foi.Especialista em química, o avô trabalhava numa grande empresa farmacêutica alemã. Como membro do alto escalão de Hitler, usou seus conhecimentos em favor das atrocidades nazistas. Ajudou a desenvolver (conceber ou executar, não sei exatamente) a câmara de gás, responsável pelo assassinato em massa de milhares de judeus durante a Segunda Guerra. Na França, como prisioneiro de guerra anos antes, tinha sido vítima de experimentos com vacinas ou algo do gênero.O relato foi feito com uma dor contida e um senso de desaprovação. Nossa anfitriã, embora não manifestasse claramente, com todas as palavras, indicava seu descontentamento com o passado nazista de parte importante da família – o avô, o homem, a referência da casa. Foram para ela anos de “isolamento, negação e medo”.O fim da vida do avô não foi citado. Tampouco perguntamos. Ao ouvir um relato pessoal e dramático dessa natureza, mantivemos o silêncio, tomados pela surpresa e emoção. Em respeito à memória da família e à nossa anfitriã. Aquela senhora – na altura dos seus 80 anos – abria seu coração ao contar uma parte polêmica (reprovável até) da história de sua família, de sua vida.E como o destino e a história caminham juntos, com a derrota do nazismo em 1945, coube a ela compor o grupo de cientistas que o governo alemão enviou posteriormente aos Estados Unidos em missão especial a fim de trocar experiências e levar à Alemanha novos conceitos.Àquela altura do almoço, tive a certeza de que vivia um momento único, privilegiado. Imaginei quantas outras pessoas teriam histórias semelhantes, de divisões e máculas, fatos a contar e a esconder. Descobri como a Segunda Guerra ainda é presente naquele solo, onde milhões de pessoas pereceram. Pensei quantas dessas vidas perdidas acabaram por mudar o rumo de famílias, de países, da história. Ali, naquele raro e excepcional momento, à mesa do almoço num apartamento de classe média em Munique, vi uma parte importante e terrível da história da humanidade passar à minha frente. Vi a história em carne e osso, aquela história que vai além dos livros. Uma história que se misturou para sempre àquela inesquecível viagem.

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