“Queiram ou não, a história do Brasil passa por Salvador.” A
frase – justa e dita num tom que denunciava certa necessidade de
autoafirmação ou reconhecimento – foi repetida algumas vezes pelo guia inteligente,
desdentado e frágil que praticamente seguiu nossos passos no conjunto formado
pela Ordem Terceira Secular de São Francisco, o Convento e a Igreja de São
Francisco.
Ele surgiu ao acaso, fornecendo informações. Depois, se
ofereceu para nos guiar. Ao fim, cobrou 60 reais de cada um – pergunte sempre
antes quanto custará uma aparente oferta generosa de ajuda.
O conjunto fica bem ao lado do coração do Pelourinho,
tomando como referência a Catedral Basílica de Salvador - que até pode ser o
mais importante templo da diocese soteropolitana, mas está longe de ser o mais
bonito.
Por fora, o complexo dedicado a são Francisco exibe o
rebuscado típico da arquitetura gótica, com destaque para os altos-relevos –
incluindo duas grandes coroas imperiais. Chamam a atenção - em meio a
referências à fé católica - figuras pagãs, como duas sereias e divindades. A
fachada é precedida de um portal, que inclui uma grade de ferro cercada por uma
estrutura em pedra, também adornada com altos-relevos.
Por dentro, a igreja - erguida no início do século 18 (entre
1702-5) - viu o estilo barroco da decoração original dar lugar ao neoclássico
numa reforma feita em meados do século 19. O que mais chamou minha atenção,
porém, foi notar na altura de uma das laterais (a da esquerda, tomando como
referência a visão do altar) um símbolo maçom - o triângulo com o olho dentro, tal como nas cédulas do dólar. Não que eu
desconhecesse a influência da Maçonaria na formação do Brasil, mas não
imaginava encontrar referência tão explícita dentro de uma igreja.
A partir dali, o que se viu dentro do complexo foi uma
mistura singular de símbolos cristãos, maçons e africanos – provavelmente
deixados por escravos usados como mão de obra no local. Merecem destaque as
salas dos Santos e da Mesa (dedicada às reuniões da Maçonaria), o ossuário e o
claustro, ricamente ornamentado com os tradicionais azulejos portugueses, um
exemplar belíssimo dessa tradição que une arte e história (de Portugal e do
Brasil).
No templo ao lado, maior, não há nada mais relevante que
a decoração esplendidamente dourada, que provocou suspiros com a brincadeira
feita pelo guia. Ele pediu que entrássemos todos com os olhos fechados e só
abríssemos quando ele ordenasse. Assim fizemos – foi quando nos deparamos com
um mundaréu de ouro como jamais vi.
Lamentavelmente, todo o conjunto – embora parcialmente
preservado considerando o padrão de cuidado (ou da falta dele) do Brasil com
seu patrimônio histórico – sofre com a desatenção do poder público e a falta de
civilidade dos visitantes, que chegam a raspar a decoração com o intuito de
levar uma lasquinha dourada como souvenir.
Como já registrei, as referências à Maçonaria se espalham,
como o entalhe de uma letra “G” (símbolo divino para os maçons, que se referem
a Deus como “Grande Arquiteto do Universo”).
Perto da Igreja de São Francisco, todos os outros templos da
capital baiana parecerão menores ou menos bonitos. E olha que são tantos (dizem
que há uma igreja para cada dia do ano)! Sim, as igrejas são um caso à parte em
Salvador. Não há rua que se passe no Pelourinho (eis uma hipérbole retórico-turística
– existe isto?) sem que se cruze com uma porta sagrada, grande parte (talvez a
maior parte) em péssimo estado de conservação.
Exemplo é a Igreja do Santíssimo Sacramento do Passo, que
ficou famosa por servir de cenário no filme clássico de Anselmo Duarte, “O
Pagador de Promessas” – única Palma de Ouro do cinema brasileiro.
O Pelourinho, ou simplesmente Pelô, mereceria um texto à
parte. Como não encontrei palavras adequadas para descrever a energia do lugar,
vale dizer que sim, ali se sente algo diferente, emanado pelo colorido das
fachadas dos imóveis históricos, tomados por lojinhas de souvenir e arte,
pousadas e restaurantes; do calor daquela gente com um gingado todo especial;
e, sobretudo, da música que ecoa por aquelas vielas e ladeiras.
Salvador tem ainda sol e mar (embora, infelizmente, a lagoa
do Abaeté e a tarde em Itapuã já não possuam mais o charme de outrora, que
atraiu músicos e poetas; aliás, o que fizeram da praça Dorival Caymmi, onde
Toquinho sentia preguiça no corpo e, numa esteira de vime, bebia água de
coco...?).
Vale destacar o esforço da prefeitura na renovação dos
espaços turísticos. O melhor exemplo é a região do Farol da Barra, que ganhou
um calçadão e uma nova iluminação.
A falta de segurança e a limpeza deficiente, queixas comuns
de turistas que visitavam Salvador, tiveram significativa melhora nas áreas
turísticas. Claro, ainda há muito trabalho a fazer (afinal, estamos falando de
uma cidade dominada por coronéis durante décadas, que padeceu das mazelas
comuns de uma região pobre num país terceiro-mundista) - exemplo é a região do
Mercado, na parte baixa da cidade, descendo o famoso Elevador Lacerda.
Mas Salvador é Salvador e nada vale mais a pena do que
assistir ao sol se deitar sobre as águas do “mar que não tem tamanho”, na porta
da Baía de Todos os Santos. Uma cena bucólica, carregada de romantismo e magia,
que atrai diariamente milhares de pessoas. E com o por do sol vem a noite e o
“diz-que-diz-que macio que brota dos coqueirais” na primeira capital do Brasil.
Porque, como fazia questão de lembrar o guia inteligente, desdentado e frágil, “queiram ou não, a história do Brasil passa por Salvador"...