A beleza da Notre-Dame

Quasímodo devia ser um cara de sorte. Era corcunda, é verdade. Sofria, é fato – inclusive de amor. O nome dela era Esmeralda. Mas não pode ser de todo triste alguém que tem como morada a Notre-Dame. A mais famosa catedral de Paris (do mundo?) está lá, envolta pelo Sena, à direita e à esquerda, deitado em berço esplêndido, como esplêndida é a Notre-Dame.
A catedral está lá desde o século 12, quando começou a ser erguida. Ele, o corcunda, chegou no século 19. Mais precisamente em 1831. Filho de Victor Hugo. Se não de carne, de alma.
Não é, porém, Quasímodo o personagem principal. É ela, a Notre-Dame. O coração religioso de Paris. Centro secular num espaço milenar. A famosa catedral fica na Île de la Cité, pequeno espaço de terra cercado de água por todos os lados. Águas do Sena. Ali viviam os parisi. Não é ilação pensar no povo e na cidade. Sim, parisi, Paris. As ruínas estão lá, dois mil anos depois, 
delicadamente escondidas degraus abaixo, na mesma ilha, sustentando Quasímodo, sustentando a fé – os pilares da fé.

Notre-Dame é bela. Belo exemplar de arquitetura gótica. Suas duas torres apontam para o céu, abraçando a nave central. Suas portas frontais convidam para um encontro. Sua rosácea, tal como um órgão vital, é fonte de energia, força e luz. A mesma energia que emana do coração. Por fora, mistério. Por dentro, brilho. Que se divide com as luzes das velas e dos tantos belos vitrais que colorem os caminhos que levam ao altar. Contraste de luz e escuridão. Paraíso e treva. Céu e inferno. Lições medievais...
Seus traços rebuscados se destacam. Suas agulhas apontam para o infinito. Seus personagens -anjos, santos, reis e religiosos – eternizam feitos, histórias, heróis, incrustados nas pedras da Notre-Dame. Mas são mesmo os gárgulas que atraem os olhares. São famosos, parceiros da odisseia de Quasímodo. Aquelas figuras assustadoras não combinam com uma catedral, embora tenham uma função estrutural importante: são as saídas de água das calhas (e isto pouca gente sabe!).

Lá dentro, o clima é um tanto sombrio - e encantador. É a arquitetura gótico-religiosa manifestando-se, a marca de uma era. O obscurantismo medieval. A intenção de realçar a pequenez humana perante o divino é claramente perceptível. Sentimentos de uma época. Um Deus inatingível, muito além das abóbadas das naves de Notre-Dame. Céu e terra distantes, unidos pela fé.
Ali, de dentro, o coração da catedral – sua rosácea central - pulsa e brilha mais forte. Encena um espetáculo esplendoroso de cores e luzes. Velas materializam pedidos, votos, agradecimentos. Aquecem a frieza do ambiente e, quem sabe, de muitos corações. A música que ecoa na acústica medieval soa como um anúncio. Prenúncio de não se sabe o quê.
Som, luzes, cores. Um conjunto harmoniosamente belo. A beleza que faltava a Quasímodo por fora, a beleza que ele escondia dentro de si. Ali, confinado naquele espaço, Quasímodo sentia-se protegido. Pelas sombras que, mal sabia ele, revelam a luz. A luz do divino.

 



E para quem acha que é pouco, volte ao exterior da catedral. Contorne-a com passos marcados, tranquilos. Observe os detalhes da arquitetura. Na primavera, aprecie a beleza, o charme e o colorido das flores e plantas nas árvores e jardins. Um espetáculo oposto ao que a igreja exibe em seu interior. Nem por isso mais ou menos belo. Porque seja na luz ou na escuridão, a Notre-Dame é a Notre-Dame.
É, Quasímodo devia ser um cara feliz...



Uma singela casa branca

The White House, a Casa Branca, é o ponto nevrálgico do poder nos Estados Unidos. De certo modo, pela influência que o país exerce, não seria exagero considerá-la o centro do poder no mundo. A casa do presidente da maior potência mundial é uma das atrações de uma cidade que gravita em torno do poder.
Ainda que seja apenas mais uma das atrações em Washington D.C., espera-se que a mais poderosa casa norte-americana (ou a casa do mais poderoso norte-americano, ainda que seu morador seja sempre temporário – viva a democracia!) exiba uma grandiosidade condizente com seu significado. Por isso, qualquer pessoa que vá à capital dos EUA espera encontrar uma grande edificação.
Foi com essa ideia que descemos – dois amigos e eu - a Connecticut Avenue. Eufóricos, disputávamos quem primeiramente avistaria a famosa casa. A proximidade da sede do poder Executivo nacional fez acelerar o pulso e acirrou a disputa. Até que alguém, talvez eu, disparou emocionado: “Ali, aquela deve ser a Casa Branca!”. A construção era até grandiosa, mas um detalhe chamava a atenção: aquela suposta “Casa Branca” era, na verdade, cinza. Gelo, talvez. Branca, não. Definitivamente!
Por alguns instantes, pairou a dúvida: seria “White” só um nome, como a Casa Rosada em Buenos Aires, sede do governo argentino, que não tem nada de rosa...? Uma dose extra de racionalidade acrescentou outra dúvida à nossa emotiva visão: a arquitetura do prédio não era exatamente aquela que nos acostumamos a ver pela TV.
Carregando mais dúvidas que certezas, decidimos seguir em frente à procura de, quem sabe, a verdadeira Casa Branca. Não sem antes, claro, registrar a nossa suposta “Casa Branca” em fotos. Estávamos na esquina da 17th. Street NW com a Pennsylvania Avenue.


Avançamos um quarteirão até o National Mall (na verdade a Constitution Avenue), a principal via do poder na capital do poder. Bastaram alguns metros adiante e uma virada à esquerda para que uma edificação bastante conhecida finalmente surgisse. De imediato, reconhecemos aquela singela casa: The White House, a Casa Branca. O centro do poder norte-americano estava ali, imponente... Imponente? Foi impossível não conter a decepção. “Aquilo ali é a Casa Branca?”, manifestamos todos, em conjunto, nosso espanto. Sim, com um certo desdém.
Colocando as ideias de modo mais racional, não que a sede do Executivo dos EUA seja, digamos, pequena ou modesta. Não é. É grande e até relativamente bela (clássica demais, mas interessante). Contudo, numa cidade que respira poder, na via que liga monumentos que contam a história da nação mais poderosa do mundo ao imponente – este sim – prédio do Congresso, a Casa Branca fica em segundo plano. Incompatível com o poder que emana.
Vista de longe, das grades que separam o imenso jardim da rua onde turistas de todo o mundo aglomeram-se em busca de fotos, a morada do presidente dos EUA parece ainda menor. Ali, em frente daquela “casa pequena demais para o poder que esconde”, o amontoado de gente, a vigilância contida de uns poucos guardas dão por alguns instantes a sensação de que estamos diante de um imóvel qualquer. Qualquer coisa que não a Casa Branca, The White House.
Até que uma outra dose de racionalidade recoloca a emoção em seu devido lugar. Finalmente, lembramos que estamos simplesmente diante da sede do poder Executivo dos EUA. A mais poderosa casa norte-americana (ou a casa do mais poderoso norte-americano, ainda que seu morador seja sempre temporário – e viva mais uma vez a democracia!).



Em tempo: ainda que estivéssemos em frente à “mais poderosa casa...” (e o resto já escrevi duas vezes), a presença de um singelo esquilo no jardim do lado externo devolveu-nos a ilusão de que aquela era simplesmente mais uma casa numa cidade qualquer. Qualquer coisa que não Washington D.C.
Até que, mais uma vez, outra dose de racionalidade reanimou a emoção: “Olha, um esquilo em frente à Casa Branca! Pode ser o esquilo do presidente dos Estados Unidos!”. E disparei o flash...


PS: para quem chegou até aqui e segue em dúvida sobre a tal “Casa Branca” cinza do início da postagem, uma olhada mais atenta ao mapa da capital dos EUA indicou que na esquina da 17th. Street NW com a Pennsylvania Avenue fica o Eisenhower Executive Office Building. Bem, podia ser “a mais poderosa casa...”

* A imagem do que pensamos ser a Casa Branca foi retirada do Google Street View porque na minha foto há outras pessoas e não as consultei sobre a exibição aqui neste blog.

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