Um encontro com a história

Quando decidi ir ao Palácio de Queluz, perto de Lisboa, sabia que estava indo para um encontro. Um encontro com o nosso passado, com a nossa história. E poucas vezes um encontro foi tão correspondido como naquela ocasião – isto mesmo, poucas vezes um lugar respondeu tão bem a um sentimento.
De longe, no declive que leva ao palácio, Queluz parece decadente. E é. Algo comum em países que aboliram a monarquia. Mas algo naquele lugar emana vida. E este algo é a certeza de que nossas vidas um dia passaram por lá.
Construído em meados do século 18, o palácio inicialmente foi uma espécie de residência de verão do príncipe consorte. Virou casa da família real portuguesa no final daquele século, após um incêndio ter atingido o Palácio da Ajuda. Dali até 1807, ano em que a corte deixou Portugal e rumou para o Brasil fugindo das tropas de Napoleão, os corredores e cômodos de Queluz protagonizaram o que de mais importante aconteceu politicamente na metrópole – que tinha a distante Terra de Santa Cruz, a esta altura já chamada de Brasil, como uma de suas colônias, a maior e mais importante delas.
Naquele palácio, andaram a rainha dona Maria 1ª, a Louca, e seu filho, o então príncipe regente (e depois rei) dom João 6º, nascido João Maria José Francisco Xavier de Paula Luís António Domingos Rafael de Bragança. Foi ele que decidiu transferir a sede da coroa para a colônia – o que mudou a história de Portugal e do Brasil.
Duzentos anos após a chegada da família real ao Rio de Janeiro, dom João ainda estava lá em Queluz. Num canto da parede, ao fim de um longo corredor que faz curva para a direita, repousa a imagem do soberano, com seu cabelo aparentemente engomado e grisalho e seus olhos aparentemente verdes, suas longas costeletas e seu traje de gala, talvez muita gala para aquele que é considerado covarde por muitos portugueses e esperto por outros. Gala excessiva para uma corte classificada de perdulária pelo jornalista Laurentino Gomes em sua obra “1808”.
Uma imagem “dedicada e apresentada a Sua Magestade (sic) Fidelíssima”, àquela altura “apenas” rei do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, posteriormente d´Aquém e d´Além-Mar em África, Senhor da Guiné e da Conquista, Navegação e Comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia e Índia.

Após a curva em que encontro dom João, surge um quarto ricamente ornamentado, num momento em que Queluz lembra Versalhes. O quarto do rei, onde nasceu (em 12 de outubro de 1798) e morreu (em 24 de setembro de 1834) Pedro de Alcântara Francisco António João Carlos Xavier de Paula Miguel Rafael Joaquim José Gonzaga Pascoal Cipriano Serafim de Bragança e Bourbon, simplesmente dom Pedro 1º (o 4º de Portugal), imperador aqui, rei lá. Aquele mesmo do “independência ou morte”, o grito que provavelmente nunca foi dito nas margens plácidas do Ipiranga.
No quarto, uma cama relativamente pequena para um homem pequeno (no tamanho mesmo, como eram, via de regra, os soberanos daquela época), a tradicional cortina cobrindo e cercando o leito, decorada com flores, duas espécies de criados nas laterais, uma foto, uma cadeira, tapeçarias e pinturas, um lustre aparentemente de cristal, muito dourado reluzindo a ouro.
Para um rei, um cômodo relativamente pequeno. Pudera. Ali era apenas e tão somente um local de repouso. No Palácio Real de Madrid, por exemplo, os tantos Carlos que lá moraram e mandaram tinham um cômodo para se vestir, um outro para jantar, um outro para orar e finalmente um para dormir – sem contar um para a guarda. Eram os aposentos reais. Em Queluz não devia ser diferente.
O tamanho diminuto (para um palácio, que fica claro) em nada reduz aquele quarto. É um cômodo de respeito, resplandescente, belo mesmo! Um lugar guardado por querubins e figuras mitológicas. Com uma faixa de seguidas flores (aparentemente flor-de-lis, símbolo da nobreza) e estrelas azuis.

À frente daquela cama, que um dia fora um leito de vida e de morte, muitos passavam. Eu parei. Ali, naquele momento, àquela hora, deu-se meu encontro definitivo com a história. Era isso, e somente isso, que eu pensava. Um pensamento que me envolvia, que tornava irrelevante tudo ao redor. Por um instante, um longo instante, senti-me parte daquele enredo. E ali deixei um pouco de mim. Para todo o sempre. Amém.

* A litografia que reproduz dom Pedro 1º morto em seu leito é do século 19 e está atualmente no Museu do Primeiro Reinado, no Rio de Janeiro.

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