Mark Twain, escritor norte-americano
Veneza é impactante. E não foi só eu que notei – aliás, esta
observação deve ser quase uma unanimidade entre seus visitantes de primeira viagem.
“Quando descemos do trem e nos direcionamos para a saída da estação, a vista
foi de matar: uma enorme basílica, diversos sobrados em tons ocre, rosa,
amarelo, laranja, e aquele canal de águas verdes onde os gondoleiros passavam
com suas camisetas listradas e suas calças claras, cantando: ‘O, sole mio...’.
Só podia ser um sonho. (...) Veneza parecia uma miragem. Até hoje me custa a
acreditar que ela está onde está, mágica, onírica, enquanto estou aqui, na
minha vulgar existência.” (Martha Medeiros, “Um lugar na janela”, p. 37-8)
Sim, Veneza é uma sobrevivente. É incrível constatar como a
cidade está ali, flutuando, exatamente como estava séculos atrás. E aqui falar “exatamente”
não é mera força de expressão. O destino preservou a história contada nos
livros. Em cada fachada, em cada relevo, em cada entalhe e em cada detalhe, a
Veneza do século 21 é praticamente a mesma do século 15. Ali estão as marcas do
progresso humano em várias áreas, da arquitetura à política.
“O Palazzo Dario e o Palazzo Corner há quinhentos anos
debatiam os grandes temas da humanidade, gritando seus argumentos, um diante do
outro, separados apenas pelo Canal Grande.
Se o Palazzo Dario era Sócrates, o Palazzo Corner era
Meleto. Se o Palazzo Dario era Dante Alighieri, o Palazzo Corner era Farinata
degli Uberti. Se o Palazzo Dario era Dom Quixote, o Palazzo Corner era Sancho.
Se o Palazzo Dario era Naphta, o Palazzo Corner era Settembrini. Se o Palazzo
Dario era Lou Costello, o Palazzo Corner era Bud Abbott.
(...) O melhor de Veneza, para mim, era seu caráter
regressista. O melhor de Veneza, para mim, era seu reacionarismo inconformista.
(...) Ela tinha o poder de contrastar, com sua prepotente
irracionalidade, o populismo iluminista de meu tempo. Ela tinha o poder de
ridicularizar, com seu esplendoroso anacronismo, qualquer espécie de soberba
progressista.” (Diogo Mainardi, “A Queda”, p. 54-6)
Veneza é o retrato do progresso que recusa. Ela suportou o
avanço dos séculos, carregou as marcas desse avanço, mas seu exuberante grau de
preservação nega tudo isto. Ali, o progresso é presente e passado ao mesmo
tempo. Presente, por exemplo, em novidades como um sistema de transporte
público eficiente. Passado, por exemplo, porque escancara a evolução
arquitetônica dos tempos. Ela mantém seu poder, seu charme, seu estilo, que
atraíram nobres dos quatro cantos do globo, mas tornou-se radicalmente plebeia
com a invasão de turistas e anônimos nas últimas décadas.
Ainda assim, as marcas de seu passado de glória estão por toda
parte. “Em Veneza, (...) as pessoas tinham nomes históricos e moravam em
históricos palácios familiares que à sua maneira estavam perfeitamente
conservados. Atrás dos porões aquáticos de um palácio, via-se o velho teto de
madeira (o felze) de uma gôndola, um
entalhe intricado, que protegia a família de olhos curiosos ou, no inverno, de
ventos gelados. No grande salotto
havia os tetos pintados por Tiepolo, e ali, sentados em cadeiras douradas à luz
mortiça, estavam os descendentes das pessoas retratadas nas aquarelas do século
XIX do salão – ancestrais em recepções nessas salas que eram então iguais ao
que são hoje. Aqui e ali o piso de mármore cor-de-rosa estava rachado e
inclinado, os anjinhos de gesso ligeiramente acinzentados, faltando uma asa ou
um dedo, mas havia o mesmo luxo luminoso e elevado em toda parte.” (Edmund
White, “City Boy – Minha Vida em Nova York”, p. 173-4)
Veneza é “in” e “out”, “up” e “down”. O começo e o fim. De
si mesma. Em algum momento, parece que alguém decidiu que tudo ali deveria
parar. Que o tempo deveria parar. E assim se fez. Tal qual a ordem divina – “fiat
lux”. Ela já foi sede da “Sereníssima República”, hoje é nada mais que uma
cidade. Já foi um dos centros mercantis mais importantes do mundo, hoje vive
basicamente do turismo.
Ainda assim, Veneza é impactante, “mágica, onírica”.
Encantadoramente decadente. Há quem profetize o seu fim, mas talvez estejam
fazendo isto há quinhentos anos. E ela está lá, firme e forte sobre as águas
verde-escuras do Canal Grande e do mar Adriático. Berço de são Marcos, segundo
a tradição; terra natal de seis papas e de muitos artistas, escritores,
compositores, arquitetos... Gente que colocou seus canais, becos e ruelas
num ponto relevante da história. E esta história está lá, viva, até hoje, para
quem quiser ver. Precisa algo mais?
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