Há um lado aristocrático numa cidade marcada pelos
resquícios da escravidão e da presença crioula nos Estados Unidos. Em Nova
Orleans, a região da avenida St. Charles é uma viagem dentro de outra viagem. É
que quem costuma visitar a cidade geralmente busca sua fortíssima musicalidade
(a região é berço do blues); a culinária que mistura as influências espanhola,
inglesa, francesa e crioula; o misticismo latente; o Mississippi e até seus
históricos cemitérios, várias atrações que vão muito além do glamour de uma
área nobre.
Ainda assim, quem descobre a St. Charles – via obrigatória rumo
ao centenário Cemitério Lafayette # 1 – entende porque Nova Orleans é diferente
de tudo. No meio da avenida, em meio a um gramado rasteiro, persistem os
trilhos do bonde. Característicos da cidade, os bondes colorem a paisagem: os vermelhos
sobem e descem a Canal Street, que divide o French Quarter do Center Business
District; os verdes atravessam a St. Charles, a longa avenida que corta vários
bairros acompanhando o “U” que o Mississippi forma naquele pedaço da cidade.
São bondes clássicos, com acabamento e bancos em madeira, tal como na década de
1920, para combinar com o estilo do lugar.
Para chegar ao Lafayette, uma das atrações macabras numa
cidade recheada delas, usar a famosa linha verde do bonde é um passeio à parte.
Naquela manhã ensolarada de sexta-feira, o vagão estava lotado tal qual os
ônibus urbanos nas médias e grandes cidades brasileiras. A cada parada, o que
parecia impossível (ou inviável) se tornava real: mais gente subia. Turistas e
locais misturados harmonicamente, contagiados talvez pela alegria do condutor.
Aos poucos, o movimento frenético das ruas comerciais vai dando
lugar à paisagem tranquila de um bairro marcadamente residencial, com mansões elegantes
em estilo vitoriano. É o Garden District, nome mais do que apropriado. Ali, árvores
frondosas típicas de áreas pantanosas projetam suas sombras nas calçadas, amenizando
o clima geralmente quente da cidade. Um verdadeiro convite para flanar.
O bairro é o berço da alta sociedade local e o seu rico
patrimônio arquitetônico é mostra disto. Uma grande fazenda em meados dos
séculos 17 e 18, a área foi sendo dividida ao longo dos tempos. No século 19, passou
a concentrar a parte inglesa da sociedade em contraponto aos franceses e
crioulos (naturalmente ocupando a região hoje conhecida como French Quarter). Esses
ingleses e descendentes tinham ligação com o comércio, eis a fonte da riqueza.
Muitas das casas daquele período ainda estão lá, exibindo
influências diversas, como da arquitetura grega e suas altas colunas e
italiana. É comum exibirem também acessórios dourados, como os números e
maçanetas das portas, e grades frontais e nas varandas feitas em ferro
ornamentado. São em geral coloridas, o que confere alegria a um lugar calmo,
relativamente silencioso, distante da balbúrdia turística do quarteirão francês.
Detalhe que chama a atenção, os tradicionais colares do
Mardi Gras, o famoso carnaval local, estão por toda parte, pendurados nas
árvores ao longo da avenida e nas portas e grades das residências, como se para
lembrar que, embora distinta do cenário geral da cidade, aquela região também é
parte da mística, erótica e festiva Nova Orleans.
Nem tudo, porém, é festa. Quando visitei a cidade em abril
de 2012, era comum ver à frente dos imóveis do Garden District placas de
aluguel (“For rent” e “For lease”) e venda (“For sale”), evidência da crise
econômica que atingiu o país em 2008 com o estouro da bolha imobiliária, a quebradeira
financeira e o consequente desemprego.
O tom aristocrático, porém, obriga a região a manter a pose.
Quando se trata do Garden District, lugar de famosos como a escritora Anne Rice
(a autora de romances vampirescos de sucesso morou lá até 2005 e a casa dela é atração
em tours guiados), a imagem que se projeta ao mundo é importante. Foi na
modesta “The Grocery” - instalada num imóvel de madeira pintado de rosa na
esquina em frente à Christ Church Cathedral - que encontrei a revista editada
exclusivamente para e sobre a via. O título era simplesmente “St. Charles
Avenue”, como se o local dispensasse apêndices. Nas páginas, destaques
comerciais e pessoais da sociedade local, como se a área fosse um gueto – o que
não deixa de ser parcialmente verdade tamanha a divergência de cenário dali
para alguns poucos quarteirões sentido rio abaixo.
O Garden District e sua artéria principal, a avenida St. Charles, talvez seja a região de Nova Orleans que melhor combine esteticamente com a Jackson Square, a charmosa praça da igualmente charmosa catedral St. Louis, o coração da cidade. E decididamente não se pode desprezar uma artéria que guarda uma ligação direta com o coração. Ainda mais na singular Nova Orleans.
- Veja aqui o álbum de fotos do UOL sobre o passeio de bonde pela
St. Charles Ave.
* As fotos são minhas e de Carlos Giannoni de Araujo
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